segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Os Dez Melhores Filmes de 2018

Acredito que a reflexão acerca da minha lista de melhores filmes de 2018 possa ser definida como um conjunto de pensamentos soltos que tentarei representar através das palavras. Como já vinha falando em publicações anteriores, o ano foi tão complicado que, de certo modo, acabei me afastando de algumas atividades que deixaram vazias algumas lacunas preenchidas pela minha cinefilia. O fato é que pude assistir a muitos filmes, mas poucos deles foram lançamentos, o que vinha tornando a tarefa ainda mais difícil nesta reta final.

Percalços à parte, consegui encontrar tempo para fazer uma maratona durante essas últimas semanas e pude, felizmente, conferir alguns dos maiores destaques desta temporada (muitos deles, inclusive, estarão presentes nessa relação final). Muitas das produções ainda estão bem frescas na minha memória, fazendo com que os critérios e o resultado final disposto nessa publicação talvez não reflitam e nem representem tudo aquilo que eu possa julgar mais justo. O problema é que 2019 já está batendo à porta, e não há mais nada que eu possa fazer para postergar a minha decisão.

Deixo um aviso importante em relação à ausência de um dos títulos que, infelizmente, tiveram de ficar de fora dessa lista. Programado para estrear no último dia 20 de dezembro, “Guerra Fria” (2018) de Pawel Pawlikowski estava, até o último momento, relacionado como o segundo melhor trabalho desta temporada, mas teve o seu lançamento adiado para 7 de fevereiro do ano que vem, muito provavelmente por ter sido um dos nove pré-indicados na categoria de Melhor Filme Estrangeiro do Oscar 2019. Fica aqui o registro, a menção especial e a certeza de que ele estará figurando a minha próxima lista de favoritos nesse próximo ciclo.

Essa informação acaba nos levando a outra discussão extremamente necessária. Para os que sempre dizem que este ou aquele trabalho fora lançado em um ano anterior ao de 2018 – ou que tal filme tenha sido exibido pela primeira vez em determinado Festival – lembro que os critérios adotados para estabelecer quais seriam os títulos escolhidos para compor essa seleção de são subjetivos e ficam restritos apenas às produções internacionais que estrearam em 2018 nas salas de cinema do Brasil através do circuito comercial, ou aquelas distribuídas diretamente em vídeo ou lançadas em plataformas de streaming.

Superando grandes obstáculos, chego a minha relação final e, após essas breves reflexões, deixo com vocês a minha lista com Os Dez Melhores Filmes de 2018 (em ordem decrescente):

10º. LUGAR: “INFILTRADO NA KLAN”

(BlacKkKlansman, Estados Unidos, 2018) - de Spike Lee

Data da Estreia: 22 de novembro de 2018

Impulsionado por uma fervorosa première no Festival de Cannes deste ano, Spike Lee acaba subscrevendo um importante manifesto político-cultural que desafia a sociedade moderna através do lançamento de “Infiltrado na Klan”, seu mais recente projeto para as telas. A produção tem contornos radicalmente ácidos, mas jamais abandona o característico tom de ironia de seu diretor ao tecer duras críticas ao atual momento de intolerância global e ao registrar o completo repúdio ao extremismo reacionário que vem provocando a ascensão de movimentos nacionalistas de supremacia branca e ampliando ainda mais os focos de tensão racial nos Estados Unidos da Era Trump. Baseado em um inacreditável evento real, o longa remonta a admirável biografia de Ron Stallworth (John David Washington) primeiro oficial afro-americano a integrar o quadro de investigadores do Departamento de Polícia de Colorado Springs já pelos idos finais da década de 70.

Por meio de uma série de correspondências e telefonemas, Ron consegue se infiltrar em braço local da Ku Klux Klan na cidade e rapidamente se transforma em um dos membros mais influentes da organização. Para além dessa ousadia – e com a intenção de alcançar objetivos que possam levar seus planos para além do inimaginável – o policial também convence Flip Zimmerman (Adam Driver), um colega judeu, a se passar por ele durante as reuniões presenciais do grupo. Como resultado imediato dessa ação, os dois agentes conseguiram tomar a liderança da seita e foram responsáveis por interceptar uma sequência de atos criminosos idealizados pelos “colegas” racistas. Traçando um paralelo com assustadores eventos da atualidade, o filme faz um alarde sobre o impressionante poder de regressão que a violência tem, demonstrando porque a incitação ao ódio continua nos causando tamanha revolta.

"BlacKkKlansman" (2018) de Spike Lee - 40 Acres & A Mule Filmworks [us] | Blumhouse Productions [us]
Legendary Entertainment [us] | Monkeypaw Productions [us] | Perfect World Pictures [us] | QC Entertainment [us]

9º. LUGAR: “O CONTO”

(The Tale, Estados Unidos | Alemanha, 2018) - de Jennifer Fox

Data da Estreia: 18 de agosto de 2018 (lançamento direto para a TV)

Professora conceituada em sua área de atuação, Jenny (Laura Dern) é também uma prestigiada documentarista que viaja o mundo colhendo relatos de mulheres que foram vítimas de abuso sexual durante a infância. No âmbito particular, consegue manter uma relação duradoura e respeitosa com o noivo até o momento em que, de forma repentina, toda essa sólida estrutura de vida começa a ficar abalada no instante em que sua mãe encontra uma antiga e curiosa história escrita por ela aos treze anos de idade. Ao revisitar o passado, Jenny passa a questionar a natureza afetuosa do relacionamento pessoal que manteve no início dos anos 70 com a cativante Senhora G. (Elizabeth Debicki), sua antiga instrutora de equitação. Relembrando alguns fatos, ela ainda se vê obrigada a resgatar passagens escondidas na memória, sobretudo quando estava na companhia de Bill (Jason Ritter), seu treinador de força e condicionamento.

Marcada por uma crescente atmosfera de tensão, a narrativa se desenvolve com base no sofrimento encubado de sua protagonista que, através de uma purga emocional, passa a reconhecer os seus próprios traumas na mesma medida em que a realidade lhe vai sendo revelada. Inspirado nas amargas e chocantes experiências íntimas da diretora e roteirista Jennifer Fox, “O Conto” não economiza em rispidez ao mostrar o quão desumana podemos ser e como certas atitudes indignas podem afetar de maneira tão profunda os sentimentos de uma criança. Exibido apenas em Festivais e planejado para ser lançado como telefilme pela HBO, o longa não possui o apuro técnico de uma grande produção cinematográfica, mas merece figurar nesta lista por explorar de forma honesta – e absolutamente necessária – um assunto polêmico que sempre causará uma série de controvérsias quando debatido.

"The Tale" (2018) de Jennifer Fox - Gamechanger Films [us] | A Luminous Mind Production [us]
Untitled Entertainment [us] | Blackbird Films [us] | ONE TWO Films [de] | Fork Films [us]
Artemis Rising Foundation [us] | ZDF (II) [de] | ARTE [fr] | Medienboard Berlin-Brandenburg [de]
Chicago Media Project [us] | WeatherVane Productions [us]

8º. LUGAR: “O OUTRO LADO DO VENTO”

(The Other Side of the Wind, França | Irã | Estados Unidos, 2018) - de Orson Welles

Data da Estreia: 2 de novembro de 2018 (lançamento global pela Netflix)

Mais do que um grande filme, o lançamento de “O Outro Lado do Vento” é um dos eventos cinematográficos mais importantes deste século. Orson Welles faleceu há 33 anos, mas é emocionante poder assistir a um trabalho tão pessoal que, assim como o de muitos outros cineastas, já estava condenado ao esquecimento por ser considerado uma obra perdida e inacabada. Rodado entre os anos de 1970 e 1976, a produção enfrentou uma série de problemas correlacionados que iam desde as dificuldades para conseguir financiamentos até processos relacionados aos direitos de propriedade intelectual que impediam o pleno prosseguimento das filmagens. Pouco antes de sua morte, Welles tentou encarar a ilha de edição, mas todas as tentativas feitas para finalizar a montagem do longa foram classificadas como um enorme fracasso. Não por acaso, a notícia da recuperação e restauração desse patrimônio fílmico causou certo alvoroço entre os cinéfilos.

Executivos da Netflix anunciaram, em março de 2017, a compra dos direitos globais da obra e o início da missão que pretendia terminar o filme com base nos apontamentos e nas diretrizes registradas em um antigo caderno de anotações de Welles, além de aproveitar as cenas já montadas por ele. A narrativa é bastante sugestiva e acompanha os passos de Jake Hannaford (John Huston), um excêntrico diretor de Hollywood que, após anos de isolamento, retoma a carreira com planos ambiciosos e inovadores para concluir os trabalhos de um antigo projeto pessoal. O que mais impressiona em todos esses esforços para resgatar “O Outro Lado do Vento” é que ficou parecendo que ele foi propositalmente feito para ser finalizado dessa maneira. Um “canto do cisne” autobiográfico que resume a carreira conturbada de um artista incompreendido.

"The Other Side of the Wind" (2018) de Orson Welles - Royal Road Entertainment [us]
Les Films de l'Astrophore [fr] | SACI [ir] | Americas Film Conservancy [us] | Netflix [us]

7º. LUGAR: “TRAMA FANTASMA”

(Phantom Thread, Estados Unidos | Reino Unido, 2017) - de Paul Thomas Anderson

Data da Estreia: 22 de fevereiro de 2018

Trabalho maduro e sofisticado conduzido com magistralidade por Paul Thomas Anderson, “Trama Fantasma” abusa da força de representação das imagens para desvendar o poder inexorável de toda a beleza e perversidade que existe dentro de cada um de nós. O filme também marca a despedida precoce do ator Daniel Day-Lewis, que anunciou em 2017 a sua aposentadoria das telas. Ele entrega, aqui, um dos papéis mais poderosos e substanciais de sua primorosa carreira, pois se esvai de todo o protagonismo para entrar de cabeça em um ardiloso e entrelaçado jogo de vaidades, costurado por regras ditadas pela consciência e pela complexidade de cada personagem. No plano das ações, testemunhamos como a crescente incompatibilidade entre um casal unido pela conveniência acaba gerando uma série de fatos inconsequentes que evidenciam o real peso de uma relação doentia e que contornam as particularidades deste instigante melodrama.

Ambientado na requintada Londres dos anos 50, o longa mergulha a fundo no elegante mundo da moda e expõe a intimidade dos bastidores de um ateliê administrado pelo renomado, metódico e inflexível estilista Reynolds Woodcock (Day-Lewis). Examinado pelos discretos olhares da irmã e parceira nos negócios, Cyril (Lesley Manville), o costureiro mantém uma rotina de elucubrações e busca o estímulo necessário para conceber suas maiores criações através do envolvimento com modelos que entram e saem de sua vida de forma constante e descartável. A genialidade, o isolamento e a rispidez são símbolos de uma trajetória pessoal construída e consumida unicamente pelo trabalho. Habituado a vestir a realeza e a alta sociedade britânica, Woodcock vê o seu vanglorioso mundo de excentricidades desmoronar quando começa a se relacionar com a enigmática Alma (Vicky Krieps), sua mais nova musa inspiradora.

"Phantom Thread" (2017) de Paul Thomas Anderson - Focus Features [us]
Annapurna Pictures [us] | Perfect World Pictures [us] | Ghoulardi Film Company [us]

6º. LUGAR: “O PARQUE”

(Le Parc, França, 2016) - de Damien Manivel

Data da Estreia: 3 de maio de 2018

Foi em uma despretensiosa sessão no meio da tarde durante o Indie Festival de 2017 que entrei em contato com "O Parque", segundo longa-metragem do cineasta francês Damien Manivel, um legítimo representante do libertário e inventivo cinema de autor, obra que transborda originalidade em todos os seus processos de construção e que ainda é capaz de recriar ambientes e situações triviais de uma forma absolutamente fantástica. Desde então, o filme permanece reverberando na minha mente, tanto pelo estilo audacioso quanto pelo conteúdo mordaz que abre espaço para um discurso ácido sobre como o imediatismo das relações humanas podem influir na ávida impaciência da juventude. Através de um metafórico estudo do amor na modernidade, a narrativa acompanha dois adolescentes que procuram se refugiar em uma natureza bucólica e permissiva a fim de se (re)conhecerem.

Receosos no que diz respeito aos próprios sentimentos, Naomie (Naomie Vogt-Roby) e Maxime (Maxime Bachelleire) decidem marcar o seu primeiro encontro em um parque durante uma agradável tarde de verão. Após vencerem a retração e a timidez de um desajeitado contato inicial, eles começam a se aproximar de maneira mais íntima, trocando impressões e discutindo as suas maiores afinidades. Entre caminhadas, conversas e inúmeras descobertas, os jovens estabelecem uma forte conexão sentimental e acabam se apaixonando. O sol se põe e carrega consigo a angústia e o nervosismo provocados pela dor de uma inevitável separação, uma despedida amarga que marca o fim de um dia agradável que fora verdadeiramente marcante para apenas um deles. A noite chega diligentemente apressada e a escuridão constrói uma fortuita atmosfera de estranhamento, evidenciando um plano de ações marcado pela desilusão e subvertido pelo desejo de reconstruir tudo aquilo que é efêmero.

"Le Parc" (2016) de Damien Manivel - MLD Films [fr] | Shellac Sud [fr]

5º. LUGAR: “UMA NOITE DE 12 ANOS”

(La Noche de 12 Años, Uruguai | Espanha | Argentina | França | Alemanha, 2018) - de Álvaro Brechner

Data da Estreia: 27 de setembro de 2018

Produto legítimo de um cinema político libertário e abertamente emocional, “Uma Noite de 12 Anos" acompanha a dolorosa jornada de luta e resistência dos militantes Tupamaros, membros de um grupo de guerrilha urbana que combatia as oportunas tentativas de avanço de forças militares e a consequente instauração de um regime ditatorial no Uruguai. Através das memórias de suas maiores lideranças – José ‘Pepe’ Mujica (Antonio de la Torre), Mauricio ‘Russo’ Rosencof (Chino Darín) e Eleuterio ‘El Ñato’ Fernández Huidobro (Alfonso Tort) – o filme já começa com a derrocada do movimento que, de maneira franca e destemida, prosseguia nas ruas em defesa da democracia frente a ruptura institucional promovida pelo golpe de Estado ocorrido no país em junho de 1973. Após serem surpreendidos e presos em ações distintas, os três companheiros permanecem encarcerados por um período de doze anos, sobrevivendo impávidos ao silêncio e à tortura.

Dotada de absoluta coragem e destreza, a condução de Álvaro Brechner consegue contornar com maestria todas as singularidades de uma narrativa extremamente melancólica e realista. Pautado pelo massacrante ritmo de progressão dos dias de confinamento, o diretor retrata, com tamanha precisão de detalhes, o inóspito ambiente das prisões e a impiedosa rotina de hostilidades vivida por esses homens. Na companhia da solidão e privados da liberdade durante todo o tempo em que esse governo autoritário se manteve no poder, Pepe, Russo e El Ñato continuaram enfrentando infindas provações até o momento da redemocratização nacional em 1985. Mesmo deixando marcas de desumanidade, loucura e violência, “Uma Noite de 12 Anos” comove ao denunciar o autoritarismo e a crueldade de capítulos obscuros da história da América Latina, se transformando em um importante documento ideológico que reverbera na atualidade.

"La Noche de 12 Años" (2018) de Álvaro Brechner - Alcaravan [es] | Haddock Films [ar]
Hernández y Fernández Producciones Cinematográficas [es] | Manny Films [fr]
Movistar+ [es] | Salado Media [uy] | Tornasol Films [es] | ZDF/Arte [de]

4º. LUGAR: “FELIZ COMO LÁZARO” (lançamento local pela Netflix)

(Lazzaro Felice, Itália | Suíça | França | Alemanha, 2018) - de Alice Rohrwacher

Data da Estreia: 30 de novembro de 2018

Moldada por uma ríspida crítica social com leves contornos de fábula, a realização de “Feliz como Lázaro” pode simbolizar o resgate de toda a essência humanista deixada como herança em várias obras do cinema italiano clássico. Através de características emocionalmente identificáveis, a diretora Alice Rohrwacher buscou inspiração em cineastas como Ermanno Olmi e Ettore Scola para construir as bases de sua incrível crônica sobre a honestidade e a perseverança. Em um primeiro momento, acompanhamos a rotina de um grupo de camponeses submetidos a um vicioso ciclo de explorações em Inviolata, pequena comunidade rural que se sustenta através do cultivo do tabaco. No centro das interações surge a figura gentil e prestativa de Lazzaro (Adriano Tardiolo), alvo preferencial desses desmandos, que, no auge de seu altruísmo e ingenuidade, engata uma improvável amizade com o tempestuoso Tancredi (Luca Chikovani), filho dos donos da propriedade.

Após um inesperado e surpreendente incidente, a trama avança pelos anos de forma significativa. O salto temporal faz com que o espectador reencontre os personagens envelhecidos e lutando para se sustentar, só que dessa vez enfrentando as dificuldades em uma grande metrópole – tal fato só demonstram como as circunstanciais relações de poder seguem interferindo de forma direta no destino de cada um. Lazzaro permanece alheio a algumas mudanças, mas se mantém preocupado com os amigos e continua enxergando o mundo inocentemente, o que evidencia ainda mais o seu espírito de generosidade e lealdade. Abraçando as metáforas e se apoiando no sincretismo cultural, o filme acaba se transformando em uma tocante alegoria da vida, cenário no qual passado e presente se misturam para mostrar que a dicotomia entre o campo e a cidade só sobrevive no plano das imagens.

"Lazzaro Felice" (2018) de Alice Rohrwacher - Tempesta [it] |  Amka Films Productions [ch] | Ad Vitam Production [fr]
Pola Pandora Filmproduktions [de] | Rai Cinema [it] | RSI-Radiotelevisione Svizzera [ch] | Arte France [fr]

3º. LUGAR: “EM CHAMAS”

(Beoning, Coreia do Sul, 2018) - de Chang-dong Lee

Data da Estreia: 15 de novembro de 2018

As artimanhas do destino acabam plantando a semente da dúvida na mente daqueles que deixam se envolver por esse thriller psicológico nada convencional, tido como a mais nova joia do arrojado cinema sul-coreano. Baseada em um dos contos do escritor japonês Haruki Murakami que, por sua vez, absorve muito das técnicas do fluxo de consciência empregadas na literatura de William Faulkner, a eloquente trama de “Em Chamas” permanece envolta por uma narrativa desafiadora que nunca se preocupa em oferecer respostas claras e rápidas para o espectador que, naturalmente, precisa estar sempre atento a todos os detalhes para conseguir desvendar as enigmáticas situações enfrentadas pelo protagonista. A complexa estrutura desse suspense começa a ser construída a partir do encontro casual entre o aspirante a escritor Jong-su (Ah-in Yoo) e Hae-mi (Jong-seo Jun), uma garota simpática que diz conhecê-lo desde bastante tempo.

Segundo ela, os dois eram amigos de infância quando viviam na provinciana cidade de Paju, muito embora ele não recorde de todas as histórias com precisão. Hae-mi está com uma viagem marcada para a África e pede para que Jong-su cuide de seu gato de estimação no período que estiver fora. Do voto de confiança nasce um envolvimento íntimo e, logo depois, um triângulo amoroso começa a ser desenhado no dia em que a jovem volta do exterior na companhia do misterioso Ben (Steven Yeun), um rapaz rico e bem relacionado que revela ter um hobby estranhamente peculiar. A partir desse ponto, o diretor Chang-dong Lee passa a nos apresentar um trabalho absolutamente intrigante, lançando metáforas circunstanciais para que fiquemos sem saber se tudo que os personagens estão vivendo gira em torno da realidade ou flutua no campo da imaginação.

"Beoning" (2018) de Chang-dong Lee - Pine House Film [kr] | NHK [jp] | Now Films [kr]

2º. LUGAR: “ROMA”

(Roma, México | Estados Unidos, 2018) - de Alfonso Cuarón

Data da Estreia: 14 de dezembro de 2018 (lançamento global pela Netflix)

A estética impactante, o apuro técnico impecável e o deslumbre visual estampado em uma hipnotizante fotografia em preto e branco transformam “Roma”, o filme mais afável e intimista da carreira de Alfonso Cuarón, em uma verdadeira aula de cinema. Através de críticas sutis, mas bastante incisivas, o cineasta traça um franco panorama histórico e social da Cidade do México no início dos anos 70, ao passo que acompanha o cotidiano fraternal e simbiótico de uma família de classe média alta sob o ponto de vista de uma de suas empregadas, Cleo (Yalitza Aparicio). Mesmo vivendo um angustiante drama pessoal, ela continua sustentando a rotina da casa cozinhando, lavando, limpando e doando generosas doses de afeto ao cuidar dos quatro filhos de Sofía (Marina de Tavira), que também vem sofrendo com as ausências e o distanciamento do marido (Fernando Grrediaga).

As diversas formas de carinho e pequenas repreensões expressas nas interações de Cleo com as crianças e com seus patrões contrastam com os momentos de catarse emocional que sempre colocam em evidência o peso das relações humanas, mostrando o lugar de cada um dentro de uma dinâmica de isolamento suavemente provocativa que acaba transferindo para o público uma experiência sensorial formidável. Aclamado como obra-prima contemporânea desde de que conquistou o Leão de Ouro no Festival de Veneza deste ano, o longa pode criar expectativas e impressões equivocadas em parte dos espectadores que aguardavam a sua estreia comercial, simplesmente pelo fato do mesmo ter sido lançado diretamente na Netflix e apenas em pouquíssimas salas de cinema ao redor do mundo – o que certamente ampliará as discussões sobre o papel que as principais plataformas de streaming deverão desempenhar ao longo dos próximos anos.

"Roma" (2018) de Alfonso Cuarón - Esperanto Filmoj [us] | Participant Media [us] | Netflix [us]

1º. LUGAR: “PROJETO FLÓRIDA”

(The Florida Project, Estados Unidos, 2017) - de Sean Baker

Data da Estreia: 1º de março de 2018

O real efeito de uma categórica crítica social ao sistemático padrão de vida norte-americano abre espaço para que um dos filmes mais humanos e verdadeiros dos últimos anos passe a ocupar a posição de número um da nossa lista. Maior esnobado da última temporada de premiações nos Estados Unidos, “Projeto Flórida” revela o que existe às margens de um mundo de sonhos possíveis que são propagados e vendidos pela artificialidade do complexo da Walt Disney World Resort. Vivendo em um motel de beira de estrada nos subúrbios da cidade de Orlando, Halley (Bria Vinaite) é uma jovem mãe que não mede esforços para prover um futuro mais digna para sua filha, a encantadora Moonee (Brooklynn Prince). Mesmo encontrando dificuldades para se manterem, elas acabam contando com a amizade, a confiança e a paciência de Bobby (Willem Dafoe), gerente do local.

Por sinal, é a espevitada garotinha quem toma conta de todas cenas, mesmo que a relação maternal seja aquela que ofereça os contornos mais ásperos para o drama, podendo fazer com que um espectador de ideais mais conservadores possa enxergar Halley como uma completa irresponsável e ainda acreditar que exista uma falta de zelo em relação à Moonee, que passa as tardes de verão solta pelas ruas aprontando confusões e se divertindo com os amigos. De forma bastante comovente e sensível, o diretor Sean Baker lança um olhar honesto sobre a representação da infância, preenchendo de ludicidade um campo no qual a inocência se transforma no principal refúgio para a imaginação dessa criança – faz de conta convertido em um ponto de fuga intangível que tenta se deslocar em direção à fantasiosa liberdade refletida pelo esplendor do castelo de Magic Kingdom.

"The Florida Project" (2017) de Sean Baker - Cre Film [us]
Freestyle Picture Company [us] | June Pictures [us] | Sweet Tomato Films [us]

É claro que uma relação com apenas dez títulos acaba sendo muito pequena para traduzir a singularidade de um ano tão especial para o cinema em todo o mundo, uma temporada incrível que nos presenteou com produções absolutamente inesquecíveis. Dessa forma, deixo mais um conjunto de pequenas listas que se encaixam em algumas categorias que também julgo serem muito importantes:

Também mereceram destaque este ano: “Antes que Tudo Desapareça” (2017) de Kiyoshi Kurosawa; “A Forma da Água” (2017) de Guillermo del Toro; “Me Chame pelo seu Nome” (2017) de Luca Guadagnino; “Bergman - 100 Anos” (2018) de Jane Magnusson; “Faca no Coração” (2018) de Yann Gonzalez; e “Ponto Cego” (2018) de Carlos López Estrada.

Não vimos e nem veremos: “Cinquenta Tons de Liberdade” (2018) de James Foley.

Ainda faltam ser conferidos: “Amante por um Dia” (2017) de Philippe Garrel; “No Coração da Escuridão” (2017) de Paul Schrader; “Sem Data, sem Assinatura” (2017) de Vahid Jalilvand; “Zama” (2017) de Lucrecia Martel; “As Herdeiras” (2018) de Marcelo Martinessi; e “Hereditário” (2018) de Ari Aster.

Podem obter grande destaque em 2019: “Assunto de Família” (2018) de Hirokazu Koreeda; “Climax” (2018) de Gaspar Noé; “The Beach Bum” (2019) de Harmony Korine; “Era uma Vez em Hollywood” (2019) de Quentin Tarantino; “The Irishman" (2019) de Martin Scorsese; e “Vidro” (2019) de M. Night Shyamalan.

Maior expectativa para 2019: “Dragged Across Concrete” (2018) de S. Craig Zahler.

(*) Lembrando que críticas, apontamentos de injustiças ou esquecimentos podem ser expressos nos comentários... ;-)

(**) Também não descartaremos os elogios! :-D

Confira também as listas com “Os Dez Melhores Filmes” de cada ano eleitos pelo Rotina Cinematográfica em artigos anteriores:

2017     -     2016     -     2015
É isso... ATÉ 2019!

E VIVA O CINEMA!

Memórias #retrospectiva | As despedidas que marcaram o ano de 2017

Em construção...

Sempre um Clássico #Especial | Filmes que completam 100 anos em 2018

Em construção...


terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Feito no Brasil | Os Dez Melhores Filmes Nacionais de 2018

Renegado por muitos, execrado por vários outros, o Cinema Brasileiro sobrevive a mais um ano extremamente difícil – não só para os seus meios de produção e distribuição internos, mas sim para a construção e manutenção da identidade cultural do país como um todo e junto das demais formas de expressões artísticas. Fato que não pode ser negado é o de que, apesar desse angustiante período de turbulências, os profissionais da área continuam trabalhando de maneira firme e corajosa para entregarem projetos cada vez mais audaciosos e inventivos que ainda colocam o Brasil entre os principais mercados cinematográficos do planeta.

Procurando garantir um espaço cativo para boa parte das produções nacionais lançadas a cada semana, o Rotina Cinematográfica vem, pelo quarto ano consecutivo, apresentar a sua lista com os melhores filmes da temporada. Destacaremos as dez obras que mais nos chamaram a atenção ao longo de 2018, sempre acreditando e batalhando para que todas elas conquistem um espaço maior em nossos circuitos de exibição no futuro – afinal, divulgar e valorizar o nosso cinema é uma atividade extremamente necessária!

Antes de divulgarmos a relação final, é importante lembrar que os critérios adotados para estabelecer quais seriam os títulos escolhidos para compor essa seleção são subjetivos e ficam restritos apenas aos filmes que estrearam em 2018 nas salas de cinema do país através do circuito comercial, ou aqueles lançados diretamente em vídeo ou em plataformas de streaming.

Depois deste breve esclarecimento, acompanhem agora a nossa Lista com Os Dez Melhores Filmes Nacionais de 2018 (em ordem decrescente):

10º. LUGAR: “O ANIMAL CORDIAL”

(O Animal Cordial, Brasil, 2017) - de Gabriela Amaral Almeida

Data da Estreia: 9 de agosto de 2018

Malicioso, sagaz e extremamente tenso, “O Animal Cordial” carrega todo o fôlego e potência que o prodigioso cinema de gênero que vem sendo realizado no país precisa para continuar conquistando a crítica e o público em geral. Assim como em seus aclamados curtas, a realizadora Gabriela Amaral Almeida consegue, mais uma vez, equilibrar muito bem as doses de horror e de suspense para criar subterfúgios que enganem o espectador a partir de eventos comuns que começam a tomar rumos absolutamente inesperados. Inácio (Murilo Benício) é dono de um sofisticado restaurante de classe média alta na cidade de São Paulo que, próximo ao fim do expediente, acaba sendo surpreendido por dois bandidos armados que invadem o seu estabelecimento e dão início a um violento jogo de descortesias e inospitalidades.

Despido de sua aparente civilidade, Inácio começa a confrontar Magno (Humberto Carrão), um dos criminosos, dando início a um embate físico e psicológico que se prolongará por toda a madrugada e que também passa a envolver sua fiel atendente Sara (Luciana Paes), o desconfiado cozinheiro Djair (Irandhir Santos), bem como os três últimos clientes que ainda jantavam no momento do assalto. A partir desse ponto, as reviravoltas provocadas pelos personagens criam dinâmicas sufocantes em um ambiente dominado pela hostilidade, preconizando a frenética luta pela sobrevivência em um espaço restrito. Ao final, podemos observar através deste brilhante e cuidadoso estudo de personalidades que, da persuasão à loucura, o ser humano pode alcançar o cerne de sua brutalidade desenvolvida em seu substrato emocional mais profundo.

"O Animal Cordial" (2017) de Gabriela Amaral Almeida - RT Features [br] | Canal Brasil [br]

9º. LUGAR: “BENZINHO”

(Benzinho, Brasil | Uruguai | Alemanha, 2018) - de Gustavo Pizzi

Data da Estreia: 23 de agosto de 2018

Carregado por uma força emocional contagiante, “Benzinho” arranca lágrimas de qualquer pessoa que o assista, justamente por despertar sensações tão afetuosas e singelas que as fazem relembrar dos mais íntimos e sinceros convívios familiares e por demonstrar que essa relação nem sempre é uma maravilha, sobretudo quando os conflitos naturais entre pais e filhos passam a desencadear uma angustiante espiral de sentimentos. Tentando administrar a instabilidade financeira do marido e os atritos conjugais da irmã, Irene (Karine Teles) ainda precisa de toda energia e versatilidade que uma mãe de quatro filhos possui para colocar em ordem uma casa que sempre parece estar virada do avesso. Seus problemas parecem dobrar de tamanho quando Fernando (Konstantinos Sarris), seu primogênito, recebe um convite para jogar handebol profissionalmente na Alemanha.

Uma avalanche de ansiedades e incertezas invadem a vida dessa família. Alegrias, chateações e sofrimentos passam a fazer parte da rotina de cada um dos personagens e ajudam a compor essa história absolutamente apaixonante, um legítimo recorte da brasileiríssima expressão “gente como a gente” condensado nos olhos marejados de Irene que revelam o sentimento de saudade que vai preenchendo a tela nos momentos finais do filme, mesmo antes de Fernando partir para a sua jornada de descobertas. Auxiliado por um elenco de apoio poderoso, que conta com os nomes de Adriana Esteves, César Troncoso e Otávio Müller, o diretor e produtor Gustavo Pizzi demonstra muito arrojo e maturidade ao conduzir o segundo trabalho em longa-metragem, mesmo após um intervalo de oito anos que separam os lançamentos de “Benzinho” e do não menos inventivo “Riscado” (2010).

"Benzinho" (2018) de Gustavo Pizzi - Bubbles Project [br] | TV Zero [br] | Baleia Filmes [br] | Mutante Cine [uy]

8º. LUGAR: “HISTÓRIAS QUE NOSSO CINEMA (NÃO) CONTAVA”

(Histórias que Nosso Cinema (não) Contava, Brasil, 2018) - de Fernanda Pessoa

Data da Estreia: 23 de agosto de 2018

Com uma premissa absurdamente brilhante, “Histórias que Nosso Cinema (não) Contava” reescreve parte da memória cultural coletiva brasileira através de um pequeno recorte do período da ditadura militar retratado de forma icônica em uma compilação de trechos dos mais famosos filmes da era da pornochanchada, gênero cinematográfico de teor cômico e erótico que invadiu e dominou as telas do país ao longo das décadas de 70 e 80. Fora a nudez e o sexo, esse fenômeno popular camuflava o seu viés crítico ao brincar com a (in)consciência de uma sociedade que tratava com humor o machismo, a homofobia e o racismo, temas considerados tabus à época. Por outro lado, o senso de civilidade dava as caras ao discutir abertamente assuntos inqualificáveis como a luta armada e a violência do Estado, por exemplo.

As mensagens estavam ali para quem quisesse absorver, em parte, muito graças ao perfil dissimulado de alguns diretores que driblavam a censura para conseguir deixar fragmentos de seus recados impressos nas películas, tal como as denúncias praticamente silenciosas e quase martirizáveis contra a tortura – ou, simplesmente, por aqueles que tentavam vender a ideia do “milagre econômico” pormenorizada pela modernização do Brasil nos chamados “anos de chumbo”. É de se louvar o árduo e minucioso processo de pesquisa da cineasta Fernanda Pessoa, que teve o cuidado de selecionar cena por cena das dezenas de filmes que foram incluídos no corte final; tudo isso somado ao categórico e impecável trabalho de montagem de sua equipe transformam este documentário em mais um importante instrumento de investigação da nossa história política e social.

"Histórias que Nosso Cinema (não) Contava" (2018) de Fernanda Pessoa - Pessoa Produções [br] | Studio Riff [br]

7º. LUGAR: “BARONESA”

(Baronesa, Brasil, 2017) - de Juliana Antunes

Data da Estreia: 14 de junho de 2018

Legítimo representante do Cinema de Guerrilha, “Baronesa” mistura o documentário e a ficção para retratar, de forma íntegra e corajosa, o cotidiano sofrido de comunidades humildes que tentam se desenvolver à margem dos impiedosos avanços de uma grande metrópole. Lidando com a opressão habitual que marca essa escala de interações, a câmera procura conquistar o seu espaço em um ambiente que, na maioria das vezes, ainda insiste em ser atroz, misógino e truculento. As lentes passam então a registrar a relação de cumplicidade entre Andreia e Leidiane, amigas de longa data que moram em casas vizinhas na Vila Mariquinhas, situada na Zona Norte de Belo Horizonte. As duas vivem compartilhando angústias, receios, sonhos e planos para o futuro; mas quando um anunciado conflito entre traficantes interrompe uma dessas conversas, Andreia pensa em deixar o bairro imediatamente.

Áspero, poético e puramente verdadeiro, o filme não economiza em clemência e nem em intensidade ao tratar a relação direta do ser humano com a violência sob o ponto de vista feminino, o que acaba alumiando a personalidade forte e visceral de suas protagonistas. Vencedor da Competitiva Aurora na Mostra de Cinema de Tiradentes em 2017, o vigoroso longa-metragem de estreia de Juliana Antunes enriquece ainda mais a atual safra do cinema mineiro, colocando em evidência uma grande geração de jovens cineastas que vêm se destacando no cenário nacional desde o início desta última década. Com narrativas inquietas e questionadoras, as produções independentes realizadas no Estado procuram estampar nas telas o quanto é dura a vida nas periferias.

"Baronesa" (2017) de Juliana Antunes - Ventura [br] | Filmes de Plástico [br] | Katásia Filmes [br] | Pepeka Pictures [br]

6º. LUGAR: “PELA JANELA”

(Pela Janela, Brasil | Argentina, 2017) - de Caroline Leone

Data da Estreia: 18 de janeiro de 2018

Afeita ao magnetismo do teatro e com algumas participações de destaque na televisão, a veterana atriz Magali Biff ainda não havia demonstrado todas as suas qualidades em uma tela de cinema até se envolver de três projetos muito interessantes ao longo de 2017, dentre os quais o doloroso e inspirador “Pela Janela”, filme no qual é a grande protagonista, vem recebendo constantes elogios desde a sua estreia no início do ano. A trama se desenvolve a partir de uma difícil situação enfrentada por sua personagem, Rosália, uma modesta operária que passou a maior parte da vida se dedicando ao trabalho como chefe da linha de produção em uma moderna fábrica de reatores elétricos na periferia de São Paulo. De forma inesperada, ela acaba sendo dispensada, pois o patrão alega que não é mais necessário mantê-la no quadro da empresa.

Abatida e emocionalmente desmoronada, Rosália busca conforto nos enternecidos braços do irmão, José (Cacá Amaral), que trabalha como motorista particular de uma tradicional família rica. Com medo que a irmã mergulhe em um estado depressivo mais grave, ficando sozinha na casa que dividem, ele decide fazer um convite para que ela o acompanhe em uma viagem de carro até Buenos Aires. Da mais sincera relação de cumplicidade entre os dois, surge o mote que norteia esta comovente jornada de autoconhecimento na qual Rosália, apesar de relutar, começa a abrir janelas para se reconhecer em mundos completamente diferentes, mesmo estando tão próxima de realidades sociais tão semelhantes à sua.

"Pela Janela" (2017) de Caroline Leone - Dezenove Som e Imagem [br]

5º. LUGAR: “AS BOAS MANEIRAS”

(As Boas Maneiras, Brasil | França | Alemanha, 2017) - de Juliana Rojas e Marco Dutra

Data da Estreia: 7 de junho de 2018

Em franco crescimento no mercado de produção audiovisual, o cinema de gênero feito no Brasil apresenta aspectos tão peculiares que já é capaz de dominar os ambientes aonde reverberam a ambição e a ousadia, expressas tanto em suas novas formas de abordagem quanto nas suas principais influências externas. Maiores nomes do segmento na contemporaneidade, Juliana Rojas e Marco Dutra misturam – mais uma vez – fantasia e realidade para compor aquele que talvez seja o projeto cinematográfico mais criativo dessa temporada. “As Boas Maneiras” conta a extraordinária história de Clara (Isabél Zuaa), contratada para acompanhar os últimos dias da gestação de sua nova patroa, a rica e solitária Ana (Marjorie Estiano), auxiliando nos atuais e futuros cuidados com o bebê e organizando os demais afazeres domésticos em um enorme apartamento de um bairro nobre de São Paulo.

As duas acabam desenvolvendo um forte e afetuoso vínculo de amizade, mas o sobrenatural começa a interferir de forma direta nessa relação quando Ana passa a apresentar comportamentos cada vez mais estranhos em noites de lua cheia. Manifestadas através de atitudes agressivas que afloram uma avidez carnal e sanguinolenta, as suas constantes crises de sonambulismo são responsáveis por descortinar a atmosfera de medo e desejo que define, com absurda subjetividade e sutileza, as bases para um espantoso, sufocante e violento terror psicológico. Marcado pela transição súbita entre o primeiro e o segundo atos, os diretores continua demonstrando condescendência frente aos recortes sociais que fez, mesmo após o impetuoso relaxamento que imprimem na narrativa. Por outro lado, o filme não deixa de transferir todas as alegorias e fabulações para a tela, ao mostrar Clara, anos depois, tendo de cuidar de Joel (Miguel Lobo), rebento licantropo de Ana.

"As Boas Maneiras" (2017) de Juliana Rojas e Marco Dutra - Canal+ [fr]
Centre National de la Cinématographie (CNC) [fr] | Dezenove Som e Imagem [br] | Filmes do Caixote [br]
Globo Filmes [br] | Good Fortune Films [fr] | Urban Factory [fr] | ZDF/Arte [de]

4º. LUGAR: “PRAÇA PARIS”

(Praça Paris, Portugal | Argentina | Brasil, 2017) - de Lúcia Murat

Data da Estreia: 26 de abril de 2018

Glória (Grace Passô) trabalha como ascensorista na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ao longo do dia, centenas de pessoas transitam apressadas pelo seu elevador sem sequer trocar o mínimo de cordialidades – atitudes que praticamente transformam a operadora em mais uma das milhares de criaturas que vagam invisíveis aos olhos da sociedade. Moradora do Morro da Providência, favela mais antiga do país, ela ainda precisa de muita coragem para continuar levando a vida adiante, mesmo enfrentando alguns problemas com o irmão, preso por chefiar o tráfico local, e tendo que lidar com os traumas adquiridos através do convívio com um pai extremamente abusivo durante a infância. Decidida a mudar os rumos de seu destino, Glória passa a frequentar sessões terapia oferecidas gratuitamente pela própria UERJ.

Ela começa a ser atendida por Camila (Joana de Verona), uma jovem portuguesa que chegou ao Brasil para concluir os estudos de pós-graduação em psicanálise e violência urbana. A partir desse momento, a construção da narrativa passa a incomodar o olhar benévolo do espectador, que passa a acompanhar, de forma apreensiva, o clima de tensão que cresce a cada consulta, justamente por reunir na mesma sala duas mulheres de mundos absolutamente diferentes. Enquanto uma delas enxerga na própria vivência a chance para exorcizar todos os seus demônios, a outra – aparentemente mais preparada para lidar com os dilemas da racionalidade – se encontra completamente perdida ao perceber que um mundo construído por significações não se encaixa em uma realidade hostil. Com uma direção precisa que traça uma crítica forte, mas ao mesmo tempo sensível, ao cotidiano perverso de uma grande cidade, Lúcia Murat entrega ao público uma de suas obras mais complexas e urgentes.

"Praça Paris" (2017) de Lúcia Murat - CEPA Audiovisual [ar] | Fado Filmes [pt] | Rede Telecine [br] | Taiga Filmes [br]

3º. LUGAR: “CAFÉ COM CANELA”

(Café com Canela, Brasil, 2017) - de Ary Rosa e Glenda Nicácio

Data da Estreia: 23 de agosto de 2018

Longa-metragem de estreia de Ary Rosa e Glenda Nicácio, promissora dupla de cineastas baianos, “Café com Canela” vai até o coração do Recôncavo para nos apresentar o cotidiano de uma comunidade humilde que se sustenta na base do afeto, da amizade e da resistência para sobreviver ao tortuoso caminho de encontros e desencontros que todo ser humano deve percorrer ao longo de sua breve existência. Reunidos em um animado churrasco na casa de Violeta (Aline Brunne), um grupo de amigos começa a relembrar alguns dos fatos que permanecerão marcados na vida de cada um – que vão desde de situações constrangedoramente engraçadas, passando por inspiradoras histórias de amor, e chegando até aos relatos mais comoventes sobre a irreparável dor de se perder alguém tão querido.

A partir do registro desse encontro, voltamos no tempo para mergulhar profundamente nos dramas de Margarida (Valdinéia Soriano), uma mulher amargurada que decide se afastar de qualquer tipo de convívio social após a morte do filho. Ela se separa do marido, perde o contato com os amigos mais próximos e acaba se isolando por completo no interior de sua residência. Através de fragmentos narrativos que, de maneira proposital, não obedecem uma cronologia linear, procuramos entender quais os reais motivos que levaram à essa clausura e nos emocionamos com a sensível jornada de redescobertas e transformações que Margarida vive a partir do momento em que Violeta bate à sua porta. Poética e extremamente representativa, a realização de “Café com Canela” abala toda uma estrutura sentimental ao evocar as virtudes mais singelas e poderosas que emanam da alma e que são tão caras à construção de nossa identidade moral.

"Café com Canela" (2017) de Ary Rosa e Glenda Nicácio
Rosza Filmes Produções [br] | Arco Audiovisual [br] | Petrobrás [br]

2º. LUGAR: “PIRIPKURA”

(Piripkura, Brasil, 2017) - de Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge

Data da Estreia: 1º de março de 2018

Pelo segundo ano consecutivo, um documentário que aborda de forma tão clara os principais desafios da questão indígena e o absurdo retrocesso em relação às políticas de demarcação de terras figura na lista de melhores filmes brasileiros do ano, demonstrando o quanto essas discussões continuam urgentes em nosso país. “Piripkura” acompanha de perto os desafios de Jair Candor, servidor de carreira da FUNAI, que há quase 30 anos luta para manter contato com Pakyî e Tamandua, últimos sobreviventes da etnia nômade que dá nome ao filme. Os índios vivem em uma pequena faixa de reserva florestal no Estado do Mato Grosso que, ano após ano, se encontra cada vez mais pressionada pelos implacáveis avanços de grandes fazendas e da indústria madeireira.

As expedições lideradas por Jair ganham a eventual companhia de Rita, irmã de Pakyî e tia de Tamandua, terceira remanescente da tribo que há muito tempo procurou refúgio em outra região, justamente por temer a violência que estava dizimando o seu povo. Envolto nos debates de questões sociais, o altruísmo é constantemente massacrado pelo insensato jogo de interesses que não dá a mínima para a preservação do patrimônio histórico e ambiental. Equilibrados entre a crueza e a sensibilidade, os olhares de Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge capturam, com extremo arrojo e precisão, os capítulos mais importantes dessa sedutora crônica de resistência – que acaba sendo construída na base do acaso através de um desfecho emocionante que transcende os limites da humanidade ao registrar o raro encontro entre o indigenista e os nativos.

"Piripkura" (2017) de Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge
Zeza Filmes [br] | Maria Farinha Filmes [br] | Grifa Filmes [br]

1º. LUGAR: “ARÁBIA”

(Arábia, Brasil, 2017) - de Affonso Uchôa e João Dumans

Data da Estreia: 5 de abril de 2018

Após ser consagrado como o grande vencedor da 50ª edição do Festival de Brasília, realizada em 2017, “Arábia” já se transformava em um dos maiores clássicos contemporâneos do Cinema Brasileiro, justamente pelo fato de abordar, de forma bastante engajada, temáticas tão caras à realidade e ao momento delicado pelo qual a nossa sociedade vem passando. Com uma narrativa densa e essencialmente humana, o longa traça a dramática jornada emocional de Cristiano (Aristides de Sousa), um homem solitário que decide cair na estrada para tentar ganhar a vida. Ele é apenas mais uma daquelas criaturas socialmente invisíveis, um indivíduo marginalizado que jamais teria a sua a história conhecida caso não tivesse sido vítima de um trágico acidente de trabalho em uma siderúrgica na cidade de Ouro Preto.

Auxiliando nos cuidados com o servidor hospitalizado, o jovem André (Murilo Caliari) acaba encontrando um simples caderno quando vai à casa de Cristiano para resgatar alguns de seus pertences. O que por acaso se descobre ao folhear algumas das páginas é que o operário mantinha uma espécie de diário manuscrito no qual rabiscava impressões sobre cada um dos destinos tomou, reflexões acerca dos aprendizados que acumulou em cada experiência profissional e lamentos por conta dos amigos e dos amores que foi deixando pelo caminho. Livremente inspirado em um dos contos do livro “Dublinenses” de James Joyce, o roteiro escrito por Affonso Uchôa e João Dumans é sustentado por uma linguagem absolutamente particular que, de certo modo, consegue absorver as principais questões políticas do país e transferir para o âmago pessoal de seu protagonista que, por sua vez, retransmite todos os seus dilemas e insatisfações para uma realidade mais palpável.

"Arábia" (2017) de Affonso Uchôa e João Dumans - Katásia Filmes [br] | Vasto Mundo [br]

Para finalizar, é importante ressaltarmos que uma lista com apenas dez títulos é muito pequena frente ao grande número de produções de qualidade que foram lançadas ao longo deste último ano. Filmes que sempre nos farão querer descobrir um pouco mais sobre todos os tipos cinema que vêm sendo feitos na nossa própria casa. Dessa forma, resolvemos incluir mais uma pequena relação de trabalhos que também se encaixam em algumas categorias que julgamos importantes. Confira:

Também mereceram destaque este ano: “Aos Teus Olhos” (2017) de Carolina Jabor; “Todos os Paulos do Mundo” (2017) de Rodrigo de Oliveira e Gustavo Ribeiro; “O Desmonte do Monte” (2018) de Sinai Sganzerla; “Ex-Pajé” (2018) de Luiz Bolognesi; “O Processo” (2018) de Maria Augusta Ramos; e “Tropykaos” (2018) de Daniel Lisboa.

Não vimos e nem veremos: “O Candidato Honesto 2” (2018) de Roberto Santucci.

Ainda faltam ser conferidos: “Canastra Suja” (2016) de Caio Sóh; “Super Orquestra Arcoverdense de Ritmos Americanos” (2016) de Sérgio Oliveira; “O Beijo no Asfalto” (2018) de Murilo Benício; “Ferrugem” (2018) de Aly Muritiba; “A Moça do Calendário” (2018) de Helena Ignez; e “Tinta Bruta” (2018) de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon.

Podem obter grande destaque em 2019: “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” (2018) de João Salaviza e Renée Nader Messora; “Humberto Mauro” (2018) de André Di Mauro; “A Sombra do Pai” (2018) de Gabriela Amaral Almeida; “Temporada” (2018) de André Novais Oliveira; “Tito e os Pássaros" (2018) de Gustavo Steinberg, Gabriel Bitar e André Catoto; e “Turma da Mônica: Laços” (2019) de Daniel Rezende.

Maior expectativa para 2019: “Sócrates” (2018) de Alex Moratto.

(*) Lembrando que críticas, apontamentos de injustiças ou esquecimentos podem ser expressos nos comentários... ;-)

(**) Também não descartaremos os elogios! :-D

Confira também as listas com “Os Dez Melhores Filmes Nacionais” elaboradas pelo Rotina Cinematográfica em anos anteriores:

2017       -       2016       -       2015

Nosso maior desejo é que ao ano de 2019 continue nos presenteando com filmes tão espetaculares e importantes quanto os desta temporada! A cultura é essencial para a construção de nossa civilidade; e resistir a tempos de apatia será absolutamente fundamental nesses próximos meses. Nunca, mas nunca se esqueçam de valorizar o nosso produto...

VIVA SEMPRE O CINEMA NACIONAL!

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

20 Filmes que completam 20 Anos em 2017 | Parte IV

Sem sombra de dúvidas, o cinema é um dos principais instrumentos que o ser humano dispõe para amenizar as suas inquietudes e procurar um verdadeiro sentido para a própria vida ou, pelo menos, para poder questionar as estruturas da delirante sociedade na qual está inserido. O curso natural e descontrolado dos eventos que vêm moldando o Século XXI escancaram uma realidade cada vez mais angustiante e abalam todas as estruturas de nossa existência. O fato é que nunca seremos capazes de reescrever os capítulos mais aterrorizantes e perturbadores da História, mas ainda temos ao nosso favor alguns de seus recortes mais valiosos, passagens que foram eternizadas em diversas obras da cinematografia mundial – são todos eles filmes incríveis capazes de nos proporcionar experiências intensas e curiosas reflexões atemporais.

Encerrando a retrospectiva especial que o Rotina Cinematográfica vem realizando ao longo dessa última semana, a quarta e última parte da nossa revisão apresentará cinco importantes filmes lançados em 1998, trabalhos que estabelecem uma conexão muito forte com os nossos receios em relação aos acontecimentos do presente e do futuro, além e estreitarem os laços com as experiências e provações vividas de forma intensa pela humanidade no passado, sobretudo aquelas que foram reflexos de adversidades catastróficas há cerca de 80 anos (no caso dos três primeiros títulos).

O Resgate do Soldado Ryan (Saving Private Ryan, Estados Unidos, 1998)

Direção: Steven Spielberg

Liderado pelo Capitão John H. Miller (Tom Hanks), um batalhão do exército dos Estados Unidos precisa ultrapassar as linhas inimigas para resgatar o paraquedista James Francis Ryan (Matt Damon), único sobrevivente de um grupo de quatro irmãos militares que foram massacrados em uma missão. No plano cinematográfico, a jornada desses soldados começa dentro da elogiada e sanguinolenta sequência inicial, remontando de forma magistral o desembarque das Tropas Aliadas no litoral da Normandia naquele que ficou conhecido como o Dia D, um dos principais capítulos da reta final dos conflitos da Segunda Guerra Mundial. Conduzida por Miller, a horda de oficiais continua seguindo o seu caminho pela praia, muito embora alguns deles passem a questionar o sentido da expedição.

À medida que as dificuldades vão surgindo, é impossível que nenhum deles comece a refletir sobre os reais motivos de oito homens estarem arriscando as suas próprias vidas para poder salvar apenas um companheiro. Em “O Resgate do Soldado Ryan”, o diretor Steven Spielberg precisou elevar ao máximo a sua tênue relação com a violência para que, de maneira incisiva, pudesse se apoiar nos dramas particulares vivido por cada de seus personagens, penetrando em mentes que tentavam entender se todo o horror de uma guerra fazia o mínimo sentido e se tudo que estão fazendo seria justificado no futuro.

"Saving Private Ryan" (1998) de Steven Spielberg - DreamWorks [us] | Paramount Pictures [us]
Amblin Entertainment [us] | Mutual Film Company [us] | Mark Gordon Productions [us]

Além da Linha Vermelha (The Thin Red Line, Estados Unidos, 1998)

Direção: Terrence Malick

Vencedor do Urso de Ouro do Festival Internacional de Berlim em 1999, a adaptação do romance autobiográfico do novelista estadunidense James Jones, “Além da Linha Vermelha” traz mais um recorte mordaz da Segunda Guerra Mundial ao enfocar os desdobramentos da Batalha de Guadalcanal, campanha que influenciou diretamente na contenção dos avanços do exército japonês pelo Pacífico. Um grupo de jovens oficiais é enviado para a ilha para auxiliar e reforçar as enfraquecidas unidades da marinha. Devidamente instalados, os soldados passam a contrastar o terror que lhes é constantemente esfregado na cara com a profunda e eterna busca de sentido para a vida.

Com um elenco recheado de astros e atores promissores, o filme ainda marcou o ousado retorno de Terrence Malick ao cinema após um hiato de vinte anos – o diretor não conduzia um projeto desde o aclamado “Cinzas no Paraíso” (1978). Curioso é perceber o quão arriscado foi o seu lançamento, pois chegou às telas apenas alguns meses depois de “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), o imponente trabalho de Steven Spielberg. O mais intrigante é notar que ambos tiveram boas recepções, mesmo tratando o mesmo assunto de maneiras completamente diferentes. Enquanto um deles trata os horrores da guerra de uma forma violentamente emocional, o outro nos oferece uma visão mais reflexiva. Malick consegue nos mostrar – aqui – que enfrentar toda essa bestialidade é uma questão, acima de tudo, cerebral.

"The Thin Red Line" (1998) de Terrence Malick - Fox 2000 Pictures [us] | Geisler-Roberdeau [us] | Phoenix Pictures [us]

Trem da Vida (Train de Vie, França | Bélgica | Holanda | Israel | Romênia, 1998)

Direção: Radu Mihaileanu

Com a franca expansão das forças do Terceiro Reich durante os primeiros anos de conflitos da Segunda Guerra Mundial, habitantes de um pequeno vilarejo judaico localizado no centro da Europa decidem se organizar e forjam um falso trem de deportação para que possam escapar de uma real ameaça nazista. É através de Shlomo (Lionel Abelanski), o maluco da aldeia, que os moradores vão se atualizando sobre os avanços do exército de Hitler enquanto tentam traçar os caminhos a serem percorridos pelo comboio cabotino. Essa ideia surreal partiu, inclusive, do próprio Shlomo, mas foi acatada por todos por ser a única solução viável diante tamanho desespero para alcançar o objetivo primordial: fugir com segurança para a Palestina.

A caminho da Terra Prometida, toda a dinâmica dentro do trem passa a ser encenada pelos membros da comunidade, interpretando eles mesmos os soldados alemães, os maquinistas e a variada gama de deportados. Entretanto, uma série de problemas começam a aparecer à medida que as dissimulações vão ficando cada vez mais realistas, o que acaba colocando em risco todos os planos de uma viagem que, aparentemente, seguia com tranquilidade. Orquestrado com maestria, bastante bom humor e uma incrível sensibilidade do diretor romeno Radu Mihaileanu, “Trem da Vida” mexe com os sentimentos do espectador ao sair do lugar comum para tratar um tema tão delicado e recorrente quanto o Holocausto, uma das maiores loucuras já vistas no mundo real.

"Train de Vie" (1998) de Radu Mihaileanu - Belfilms [il] | Canal+ [fr] | Centre National de la Cinématographie (CNC) [fr] | Centre du Cinéma et de l'Audiovisuel de la Fédération Wallonie-Bruxelles [be] | Eurimages [fr] | Hungry Eye Lowland Pictures B.V. [nl] | Noé Productions [fr] | PolyGram Audiovisuel [fr] | RTL-TVi [be] | Raphaël Films | Sofinergie 4 [fr]

Medo e Delírio em Las Vegas (Fear and Loathing in Las Vegas, Estados Unidos, 1998)

Direção: Terry Gilliam

Baseado no romance homônimo do extravagante escritor estadunidense Hunter S. Thompson, “Medo e Delírio em Las Vegas” é um moderno film à clef que reverencia a viagem psicodélica de seu próprio autor, um sujeito que procura alcançar o idealismo do sonho americano através do consumo exagerado de álcool e de várias substâncias lisérgicas. Thompson é considerado o pai do jornalismo gonzo, publicação na qual o narrador abandona o plano da objetividade para se intrometer diretamente na ação, misturando-se com a realidade da maneira mais abstrata possível. Para comandar essa excêntrica aventura alucinógena não poderia haver ninguém melhor que Terry Gilliam – um diretor que sempre flutua em mundos fantasiosos, mas deixa pelo menos um dos dedos de seus pés encostado no chão.

No campo ficcional, essa mesma jornada de insanidade é vivida por Raoul Duke (Johnny Depp), repórter enviado à Las Vegas para cobrir o Mint 400, uma famosa corrida de motos realizada no meio do deserto. Na companhia de seu advogado, o imputável e intransigente Dr. Gonzo (Benicio Del Toro), o jornalista acaba mergulhando em um paranoico submundo de conspirações no qual somente drogas muito poderosas podem fazer com que os eventos vividos por eles transcorram com aparente normalidade. Enérgico e, por vezes, hilariante, o filme não mede esforços para engrandecer experiências verdadeiramente intensas diante de um arquétipo de realidade moldado por uma forma de existência tão opressiva.

"Fear and Loathing in Las Vegas" (1998) de Terry Gilliam - Fear and Loathing LLC [us]
Rhino Films [us] | Shark Productions [us] | Summit Entertainment [us] | Universal Pictures [us]

Pi (Pi, Estados Unidos, 1998)

Direção: Darren Aronofsky

Maximillian Cohen (Sean Gullette) é um matemático paranoico que procura, de forma incansável, por uma sequência numérica chave que desbloqueie ou unifique todos os padrões universais encontrados na natureza. Enclausurado, evitando a luz do sol e o contato com outras pessoas, Max acaba construindo um supercomputador que lhe fornece o encadeamento completo do número π. Tal descoberta faz com que ele compreenda toda a existência da vida na Terra decifrando, inclusive, os maiores segredos da Bíblia Sagrada e podendo até mesmo prever a sucessão lógica dos acontecimentos globais e as tendências de mercado nas principais bolsas de valores do mundo.

É claro que toda essa genialidade tem um custo alto. O jovem intelectual é assolado por dores de cabeça extenuantes e perturbadoras que se agravam à medida que os números vão lhe trazendo respostas cada vez mais reveladoras. Por fim, Max começa a ser assediado pelos nomes mais importantes de Wall Street e passa a ser perseguido por integrantes de uma obscura seita judaica radical que também pretende elucidar os mistérios que existem por trás deste enigma matemático. Caótico, enérgico e intrigante, “Pi” ainda representa a estreia avassaladora do diretor e roteirista nova-iorquino Darren Aronofsky em longas-metragens, observando nele o vigor que continuaria dando a tônica em seus trabalhos posteriores.

"Pi" (1998) de Darren Aronofsky - Harvest Filmworks [us]
Truth and Soul Pictures [us] | Plantain Films [us] | Protozoa Pictures [us]

Dessa forma, chegamos ao fim mais uma retrospectiva – uma jornada emocional e nostálgica que reacende e alimenta a nossa memória cinematográfica. E para relembrar os filmes apresentados ao longo dessa última semana, basta continuar navegando pela página do Rotina Cinematográfica ou visitar os links correspondentes a cada um dos artigos que estão dispostos logo abaixo:

PARTE I          PARTE II          PARTE III