quarta-feira, 30 de novembro de 2016

20 Filmes que completam 20 Anos em 2016 | Parte IV

Um suspense alucinante e eficaz com pinceladas ácidas de humor negro ditado pela marca autoral de dois dos cineastas mais aclamados dos Estados Unidos; um peculiar e aterrorizante suspense policial brasileiro marcado pelo esquecimento; um bom filme de ação que começava a colocar em evidência as ambições megalomaníacas e espetaculosas de um diretor constantemente perseguido pela crítica; um dos grandes sucessos de bilheteria dos anos 90 que já se configurava como o maior clássico da ficção científica contemporânea; e a apaixonante cinebiografia de uma das mais incríveis e inspiradoras figuras do mundo da música.

Antecipando a publicação em um dia para conseguir cumprir o cronograma do mês, o Rotina Cinemeira encerra a retrospectiva especial realizada ao longo de novembro, elencando 20 importantes trabalhos produzidos e lançados em um não tão distante ano de 1996; ano repleto de filmes inesquecíveis, clássicos contemporâneos que ainda mantém o fôlego e chegam vigorosos em 2016, completando os seus 20 anos de lançamento. Preciosidades que, se ainda não estão, já deveriam estar nas estantes (ou nos HDs) de qualquer cinéfilo.

Fargo - Uma Comédia de Erros (Fargo, Estados Unidos | Reino Unido, 1996)

Direção: Joel Coen e Ethan Coen

A audaciosa trama de “Fargo” é apresentada ao espectador sob a premissa de que “muito pode acontecer no meio do nada”. Curiosamente subtitulado no Brasil como “Uma Comédia de Erros”, esse suspense eficaz com pinceladas ácidas de humor negro tem a marca característica de qualquer trabalho assinado pelos Irmãos Coen: a de retorcer e reinventar gêneros clássicos consolidados, transformando-os em vigorosas peças contemporâneas. Dirigido por Joel e produzido por Ethan, o filme é violentamente perturbador, mas sempre conduzido por situações hilárias que nos surpreendem.

O primeiro sobressalto vem logo no início, quando nos é sugerida que a história, transportada para a pequena cidade de Fargo, no Estado da Dakota do Norte, teria sido concebida a partir de “eventos reais” ocorridos em Minnesota no ano de 1987. Jerry Lundegaard (William H. Macy), gerente de uma revendedora de automóveis, elabora um plano desonesto e completamente inusitado para se livrar de um grave problema financeiro. Ele traça um esquema arriscado para sequestrar a própria esposa, fazendo um acordo com dois marginais que receberão, caso executem todas as suas ordens, um carro novo e metade dos 80 mil dólares exigidos no resgate. Desesperadamente endividado, Jerry pretende ficar com todo o dinheiro, imaginando que a quantia será desembolsada pelo seu sogro, um homem muito rico e dono da agência na qual trabalha.

Entretanto, uma série de imprevistos e mal-entendidos acabam complicando a situação do psicopata paranoico Gaear Grimsrud (Peter Stormare) e do atrapalhado e falastrão Carl Showalter (Steve Buscemi), bandidos contratados por Jerry, pois ambos não conseguem controlar o ritmo de suas ações e se veem envolvidos em um caso de triplo homicídio. Mantendo a serenidade habitual, mesmo espantada pelos crimes que agitaram a monótona rotina da comunidade pela qual é responsável, entra em cena a desajeitada, porém competente chefe de polícia Marge Gunderson (Frances McDormand), que tenta solucionar os mistérios de sua primeira grande investigação.

Marge é, sem dúvida, uma das figuras mais cativantes desenvolvidas dentro do universo particular dos Coen. O detalhe gracioso de sua gravidez em estágio avançado a deixa ainda mais descompassada, mas coloca em evidência uma autoconfiança e perspicácia invejáveis. O papel rendeu à McDormand o Oscar de Melhor Atriz em 1997; a singularidade do roteiro também foi premiada pela Academia no mesmo ano. Tenso e peculiarmente divertido, “Fargo” é um exemplar genuíno de uma narrativa original e alucinante reconduzida às afetivas memórias interioranas dos geniais (e urbanos) irmãos minesotanos.

"Fargo" (1996) de Joel Coen e Ethan Coen - PolyGram Filmed Entertainment [gb] | Working Title Films [gb]

Olhos de Vampa (Olhos de Vampa, Brasil, 1996)

Direção: Walter Rogério

Sob a alcunha de “obra maldita” e condenado ao eterno fracasso, “Olhos de Vampa” é um filme relativamente raro. Afinado com o gênero de terror, esse peculiar suspense policial acabou sendo atirado em qualquer fundo de gaveta logo após ser alvo de uma espécie de “censura mercadológica”, essa responsável por promover insistentes intervenções em produções cinematográficas realizadas no período pós-retomada. Subjugada, esquecida e ocultada nos arquivos da filmografia nacional durante anos, a película fora rodada uma única vez durante seu lançamento no Festival de Brasília. Contudo, uma inesperada exibição em 2004, durante a 28ª Mostra Internacional de São Paulo, trouxe à tona a curiosa indiscrição em relação ao longa, inflamando olhos afoitos para acompanhar uma projeção quase inédita.

No mesmo período, algumas cópias foram lançadas em VHS e DVD, permitindo que o filme restabelecesse sua trajetória de circulação, embora viesse a ser apreciado apenas por um grupo bem específico. Ou seja, mesmo não sendo fáceis, esforços para conhecer o último projeto de Walter Rogério como diretor eram sempre possíveis. Inclusive, nosso eventual contato com “Olhos de Vampa” foi fortuito e absolutamente oportuno; duas sessões marcaram sua extraordinária apresentação em Belo Horizonte, ocorrida há pouco mais de dois anos na primeira edição da mostra “Medo e Delírio no Cinema Brasileiro Contemporâneo”.

A trama se desenrola quando uma jovem é encontrada morta em pleno Parque do Ibirapuera. A partir desse evento, crimes semelhantes continuam a aterrorizar mulheres que diariamente transitam pelo bairro de Pinheiros, em São Paulo. Os assassinatos são imediatamente ligados à ação de um suposto serial killer, pois possuem um aspecto ritualístico incomum: todas as vítimas têm o sangue do corpo completamente sugado por uma mordida na nádega direita, sendo ainda amarradas pelos pulsos com uma fita isolante e tendo pêssegos enfiados na boca. Sob ordens do Delegado Arthur (Antônio Abujamra), Oscar (Marco Ricca) e Leôncio (Washington Luiz Gonzales) são os policiais que ficam encarregados de capturar o criminoso. Por meio de uma fotografia, os dois acabam reunindo estranhas evidências para seguir os passos do possível suspeito: o enigmático Vampa (Joel Barcellos).

De gosto questionável, “Olhos de Vampa” andou na contramão de trabalhos que propunham reerguer o Cinema Brasileiro. Numa análise básica, reconhece-se a louvável, porém frustrada tentativa de Walter Rogério em revisitar o cinema popular de gênero, buscando se aproximar ao clima libertino das pornochanchadas ou restaurar as façanhas autorais de produções estritamente baratas da Boca de Lixo Paulistana.

"Olhos de Vampa" (1996) de Walter Rogério - Magia Filmes [br]

A Rocha (The Rock, Estados Unidos, 1996)

Direção: Michael Bay

Intensidade e adrenalina sempre foram as marcas registradas do controverso produtor e diretor Michael Bay que, antes de se preocupar somente com o alcance da famigerada perfeição em explosões (principalmente na desconexa franquia de “Transformers”), mantinha pelos menos um de seus pés no chão realizando curtas, documentários e videoclipes até finalmente alcançar sucesso e reconhecimento com os primeiros trabalhos cinematográficos como, por exemplo, o divertido “Os Bad Boys” (1995), seu longa de estreia. De maneira positiva, “A Rocha” também está situada nessa linha do tempo.

Um grupo de ex-combatentes renegados pelas Forças Armadas dos Estados Unidos toma o controle da lendária penitenciária de Alcatraz ao mesmo tempo em que se apropria de um conjunto poderoso de armas químicas e biológicas. Comandados pelo General Francis X. Hummel (Ed Harris), herói e veterano da Guerra do Vietnã, os soldados acabam fazendo 81 reféns e ameaçam disparar todo o arsenal disponível em direção à cidade de São Francisco caso uma quantia de cem milhões de dólares não fosse repassada a eles. Um dos principais objetivos do motim seria o de doar grande parte da quantia exigida às famílias de soldados mortos em missões secretas que nunca foram reconhecidas ou assumidas pelo exército e pelo governo.

Na nervosa e iminente tentativa de contra-atacar uma provável ação dos rebeldes instalados na ilha, o FBI se vê forçado a formar um esquadrão especial de combate, recorrendo a figuras distintas como Stanley Goodspeed (Nicolas Cage), um jovem especialista em armamentos bioquímicos; e o ex-presidiário John Patrick Mason (Sean Connery), único homem que conseguiu escapar com vida do famoso presídio. Por fim, os dois acabam tomando frente e liderando uma refutada ofensiva ante aos militares.

Entretenimento na medida certa para aqueles que procuram descontração com um bom exemplar do gênero, “A Rocha” ainda oferece uma trama bem amarrada e conta com ótimas interpretações de atores que, assim como Bay, tem grande parte dos trabalhos contestados ao longo da carreira (muito embora os fortes estereótipos também tenham ajudado a construir com retidão o ardil protocolar e severo comum em filmes sobre o militarismo). Apesar dos elogios, cabe ressaltar que a narrativa se perde um pouco nas exageradas sequências de ação próximas ao ato final; o que não chega a estragar o ritmo e nem tornar cansativo o momento de curtição do espectador, mas já evidencia os traços megalomaníacos e espetaculosos da personalidade de um cineasta constantemente perseguido pela crítica.

"The Rock" (1996) de Michael Bay - Hollywood Pictures [us] | Don Simpson/Jerry Bruckheimer Films [us]

Independence Day (Independence Day, Estados Unidos, 1996)

Direção: Roland Emmerich

Um dos principais sucessos de bilheteria dos anos 90, “Independence Day” configurava-se antes mesmo de sua estreia como, se não o maior, um dos maiores clássicos da ficção científica contemporânea, pelo menos no que se referia à utilização dos efeitos especiais, bem como a espantosa e magnética capacidade de entreter seu espectador, mantendo-o sempre colado na poltrona. Dirigida pelo alemão Roland Emmerich, a mais nova megaprodução hollywoodiana se propagava por inúmeras salas ao redor do mundo evocando o fascínio e o medo hospedados no âmago da sociedade global, constantemente preocupada com as prováveis consequências de uma invasão alienígena.

Como já foi dito, o encantamento se deu, inicialmente, pelo belo espetáculo visual que os trailers da época nos proporcionavam. A cena de destruição da Casa Branca em Washington, por exemplo, é uma das mais icônicas da história recente do cinema e, invariavelmente, costuma ser lembrada até por pessoas que sequer tenham assistido ao filme. Todo o cartaz e o gabarito que a marca “Independence Day” vinha conquistando ainda em seu processo de filmagem garantiriam uma susceptibilidade permissiva, tanto ao diretor quanto aos produtores envolvidos no projeto, para que pouco se preocupassem em oferecer ao público uma história densa e com arco dramático bem construído.

Fugindo de polêmicas e de possíveis teorias conspiratórias, o enredo despretensioso e ingênuo acompanha David Levinson (Jeff Goldblum), um expert em comunicação por satélites que se reúne com o presidente dos Estados Unidos, Thomas J. Withmore (Bill Pullman), com o intuito de alertá-lo sobre uma transmissão vinda do espaço que ele teria interceptado e decodificado, revelando algo parecido com uma contagem regressiva. As medidas e ações deveriam ser tomadas com muita rapidez, afinal espaçonaves gigante começavam a aparecer em vários cantos da Terra, demostrando uma atitude hostil e nada amistosa.

Os pontos negativos do longa caminham junto com a previsibilidade narrativa. Há de se criticar os excessos com relação ao enaltecimento do nacionalismo estadunidense, emanado à exaustão por figuras patrióticas e heroicas que nunca abandonam o clichê quase inoperante que afirma que somente a força de vontade do ser humano é capaz de combater raças ou tecnologias infinitamente superiores (caso do Capitão Steven Hiller, interpretado por Will Smith). Exageros e críticas à parte, é importante agregar valores à realização de “Independence Day”, que merece destaque significativo em qualquer lista de grandes filmes, pois criou um novo conceito ao modernizar e inaugurar uma nova fase para os filmes-catástrofe.

"Independence Day" (1996) de Roland Emmerich
Twentieth Century Fox Film Corporation [us] | Centropolis Entertainment [us]

Shine - Brilhante (Shine, Austrália, 1996)

Direção: Scott Hicks

Completamente atormentado, um insólito desconhecido chega a um restaurante em uma noite chuvosa. Dotado de hábitos e trejeitos peculiares, o homem se mostra um sujeito de personalidade excêntrica, que é imediatamente contrabalançada pela incomum habilidade de domar o piano do estabelecimento. Compassiva, a gerente do local manifesta sua solidariedade abrigando-o em sua casa e ouvindo atentamente as suas histórias. A partir deste momento começa a ser revelada, através de flashbacks, a vida do pianista australiano David Helfgott, músico de talento apreciável que desde muito cedo demonstrava um talento surpreendentemente harmonioso para a linguagem dos sons.

Vencedor do BAFTA, do Globo de Ouro e do Oscar de Melhor Ator pela interpretação de Helfgott, Geoffrey Rush se doa para o personagem de uma forma raramente vista, oferecendo ao público a oportunidade de se apaixonar por uma das figuras mais incríveis e inspiradoras da antologia cinematográfica. Tangenciando o drama está o fato de que, como concertista, David jamais atingiu o nível que especialistas em música esperavam que ele atingisse, incluindo seu próprio pai, Peter (Armin Mueller-Stahl). Dessa forma, começamos a compreender como um prodigioso instrumentista passa a desenvolver graves problemas psicológicos, enfrentando desde a infância os conflitos com um pai autoritário e ambicioso que o pressionava para alcançar a perfeição e atingir o sucesso.

Indesejavelmente, erros cometidos por algumas famílias são capazes de destruir carreiras notáveis. No caso de Peter, fica clara a falta de instrução e capacidade compreensiva para administrar a carreira do filho. Desdobrada de maneira devastadora, a trajetória de Helfgott é marcada pela súbita decadência. Cada vez mais afetado por distúrbios mentais e crises emocionais, as habilidades e os lampejos de genialidade do músico raramente vêm à tona. Anos mais tarde, com a ajuda da esposa, David volta a encarar um piano, retorna aos palcos e recebe, com toda justiça, a merecida aclamação popular e o reconhecimento da crítica especializada.

Dirigido pelo também australiano Scott Hicks, ex-produtor de documentários para a televisão, “Shine - Brilhante” é uma cinebiografia poderosa que transmite de maneira dolorosamente trágica a extravagância que sempre vem embutida no caráter de grandes artistas. A trilha sonora também é impecável, com grande parte das melodias compostas pelo próprio David Helfgott, bem como o “Concerto para Piano n° 3”, tocado na cena mais emblemática do filme; afinal, Rachmaninoff é um deleite para os ouvidos e para os corações de qualquer pessoa apaixonada pelo cinema, pela música e pela vida!

"Shine" (1996) de Scott Hicks - Australian Film Finance Corporation (AFFC) [au]
Film Victoria [au] | South Australian Feature Film Company [au]

Dessa forma, chegamos ao fim da nossa retrospectiva! Caso queiram relembrar os filmes apresentados anteriormente nos outros artigos, basta continuar navegando pela nossa página ou clicar nos links correspondentes a cada uma das partes que seguem logo abaixo:

PARTE I                PARTE II                PARTE III

Particularmente, reafirmo que cumprir com antecedência as metas de um desafio que estabeleci no final do mês passado renovaram completamente a minha confiança, me enchendo de ânimo para continuar mantendo esse espaço vivo. Dezembro começará com novos desafios, dos quais também pretendo cumprir todos, oferecendo aos leitores informações das quais julgo relevantes para compartilharmos juntos o nosso Amor pelo Cinema. A lista dos melhores filmes do ano (tanto os nacionais quanto os internacionais) já está sendo preparada para mais duas publicações especiais.

Transbordado de esperança, já garanto que a retrospectiva “20 Filmes que completam 20 Anos em 2017” voltará com força total e novamente em seu período habitual: julho do ano que vem. Apresentaremos a já tradicional revisão cinematográfica do nosso blog; dessa vez com uma lista de clássicos incríveis lançados no ano de 1997.

Até lá...

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

20 Filmes que completam 20 Anos em 2016 | Parte III

Um conto adolescente que traduz uma das mais belas reflexões sobre a eloquência e a instabilidade do amor; um estouro de bilheteira responsável por consolidar o nome de um astro como um dos principais nomes do cinema de entretenimento; um épico grandioso perdido entre as ligeiras narrativas dos principais filmes da Hollywood dos anos 90; o filme que estabelece a marca definitiva de uma das mais famosas e notórias colaborações entre amigos que amam fazer cinema; e o drama sensivelmente amargo e dilacerador que coloca em evidência o caráter transcendental do amor e faz severas críticas à hipocrisia de algumas instituições religiosas.

Continuem acompanhando a retrospectiva que o Rotina Cinemeira vem realizando ao longo deste mês de novembro. Apresentamos aqui 20 importantes trabalhos produzidos e lançados no ano de 1996. Clássicos instantâneos e filmes inesquecíveis que, mesmo completando 20 longos anos, ainda continuam alimentando a curiosidade dos fãs da Sétima Arte pelo mundo. Preciosidades que já deveriam estar nas estantes (ou nos HDs) de qualquer cinéfilo.

Conto de Verão (Conte d’Été, França, 1996)

Direção: Éric Rohmer

Terceiro longa da afetuosa série intitulada “Contos das Quatro Estações”, dirigida pelo francês Éric Rohmer, “Conto de Verão” talvez represente uma das mais belas reflexões sobre a eloquência e a instabilidade do amor. Movidos pelos desencontros e marcados pela desorientação, nossos sentimentos são absurdamente inflamáveis e carregados tanto de certezas quanto de incertezas. Nos apegamos aqui a uma característica típica do ser humano, que é a de nunca saber o que querer ou o que esperar da vida, principalmente quando ainda somos tão jovens como os protagonistas do filme.

Durante as férias de verão, Gaspard (Melvil Poupaud) viaja para o balneário bretão de Dinard, no noroeste da França, onde pretende passar algumas semanas com Lena (Aurelia Nolin), uma amiga por quem está apaixonado. O fato começa a tomar contornos descabidos quando percebemos que Gasrpard não sabe ao certo se Lena realmente aparecerá para o encontro, o que acaba transformando os seus dias e horas de espera em tédio e inquietação que se esvaem pela praia. Em uma de suas andanças, o rapaz conhece Margot (Amanda Langlet), uma garota simpática que trabalha como garçonete em uma creperia à beira-mar. Os dois logo se tornam amigos e passam a preencher seus longos períodos de ociosidade com passeios e conversas agradáveis, fazendo-os se aproximar cada vez mais.

Cativado pela forma despreocupada como Margot leva a vida, Gaspard começa a demonstrar nítido interesse por ela, embora sempre se hesite nas tentativas de contar sobre os verdadeiros motivos de sua viagem. Conduzido pela aparente sensatez da amiga em relação aos assuntos que discutem, o jovem é constantemente provocado e confrontado por tiradas ácidas e certeiras acerca do amor. Os desentendimentos fazem com que os encontros com Margot fiquem menos frequentes e ainda permitem que Gaspard conheça melhor a sensual e provocante Solene (Gwenaëlle Simon); embora meticuloso, o interesse repentino da garota marcados por encontros casuais fazem muito bem para o seu ego. Mas quando toda a jornada de descobertas parecia caminhar para um final libertador/transformador, Gaspard esbarra por acaso com Lena, que chegou a Dinard há alguns dias sem sequer entrar em contato com ele.

Os desenlaces minimalistas de “Conto de Verão” são dados como nos demais filmes da série; obras que vêm com a proposta de aproximar de maneira íntima o espectador ao cotidiano das personagens, assumindo um caráter existencialista e especulativo para explicar o que é relativamente inexplicável: a letargia de nossas ações.

"Conte d'Été" (1996) de Éric Rohmer - Canal+ [fr] | La Sept Cinéma [fr] | Les Films du Losange [fr] | Sofilmka [fr]

Missão: Impossível (Mission: Impossible, Estados Unidos, 1996)

Direção: Brian De Palma

Após uma operação fracassada liderada por Jim Phelps (John Voight), o agente especial Ethan Hunt (Tom Cruise) é acusado por uma suposta atitude desleal que culminou em um grave incidente na cidade de Praga, onde maioria de seus companheiros acabaram sendo assassinados. Enquanto busca provar sua inocência, Ethan entra em contato com outros agentes desligados da organização com o objetivo de criar um grupo de espionagem independente. Com o auxílio de Franz Krieger (Jean Reno), Claire Phelps (Emmanuelle Béart) e Luther Stickell (Ving Rhames), Hunt arquiteta um arriscado estratagema afim de recuperar uma lista secreta guardada dentro da fortificada e intransponível Sede da CIA, documento no qual se revelam os verdadeiros responsáveis pela fatalidade.

Estouro comercial que representou um dos maiores sucessos de bilheteria no ano de 1996, “Missão: Impossível” consolidava o nome de Tom Cruise como uma das principais personalidades do cinema e do entretenimento nos Estados Unidos. Junto com a agente e amiga Paula Wagner, o ator fundava a Cruise/Wagner Productions e, pela primeira vez na carreira, participava de um audacioso projeto cinematográfico como produtor. Após engatar uma parceria com o executivo Paul Hitchcock e conseguir parte do financiamento através da Paramout Pictures, o primeiro desafio da dupla seria adaptar para as telas uma das mais famosas séries da TV americana. Idealizada por Bruce Geller, “Missão: Impossível” alcançou êxito significativo entre as décadas de 60 e 70 e encarou um tímido retorno no final dos anos 80.

Com ambiciosas pretensões para conquistar espectadores ao recobrar as marcas impressas pelo seriado há um par de décadas, Cruise e os demais produtores decidiram que a redação do argumento final ficaria a cargo dos consagrados roteiristas David Koepp, de “Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros” (1993), e Robert Towne, vencedor do Oscar por “Chinatown” (1974); por fim, o comando das ações ainda foi entregue nas mãos virtuosas do já experiente Brian De Palma.

Em uma franca depreensão, a excelência alcançada por um trabalho carregado de entusiasmo como “Missão: Impossível” já seria suficiente para colocá-lo entre os melhores filmes de ação realizados em todos os tempos, inclusive por continuar rendendo continuações bem-sucedidas para uma franquia vigorosa e em constante evolução. Habitualmente classificado como um clássico moderno do gênero, foi rodado em um período onde as produções passaram a ser muito mais afinadas (leia-se: “apoiadas”) aos efeitos especiais computadorizados, uma era pré-explosões que ainda não conhecia câmeras tão velozes ou astros essencialmente furiosos.

"Mission: Impossible" (1996) de Brian De Palma - Paramount Pictures [us] | Cruise/Wagner Productions [us]

O Paciente Inglês (The English Patient, Estados Unidos | Reino Unido, 1996)

Direção: Anthony Minghella

Grande vencedor da cerimônia de entrega do Oscar de 1997, arrebatando um total de nove estatuetas (incluindo melhor filme, melhor diretor e melhor atriz coadjuvante para Juliette Binoche), “O Paciente Inglês” já tinha se transformado em um dos projetos mais ambiciosos e arriscados da indústria do cinema ainda na fase de concepção, justamente pelo fato de investir uma boa quantia de dinheiro em um projeto que provavelmente não encantaria o grande público (o que, de certa forma, acabou acontecendo). O diretor e roteirista Anthony Minghella baseou-se no premiado romance de Michael Ondaatje para contar uma cruel e comovente história de amor proibido que prosperou durante atemorizados tempos de guerra.

Hana (Binoche), uma jovem enfermeira canadense, é voluntária de um mosteiro abandonado que funcionava como hospital durante os momentos finais da Segunda Guerra Mundial na Itália. Ela oferece cuidados a um desconhecido (Ralph Fiennes), cuja única informação sabida é a de que se tratava de um piloto de avião que se encontrava desmemoriado e completamente desfigurado por queimaduras que sofrera após seu bimotor ter sido abatido na África Subsaariana. Por falta de identificação após ter sido resgatado por beduínos, o militar fica conhecido apenas como “paciente inglês”.

Recobrado de consciência, o resignado homem se revela como o conde húngaro Laszlo Almásy. Com o tempo, ele começa a relembrar e narrar para Hana as memórias do envolvimento sentimental que estabeleceu com Katherine Clifton (Kristin Scott Thomas), mulher de seu melhor amigo, e de como o amor que sentia por ela fora fortemente correspondido durante os anos. Carregado de mistérios, o passado de Laszlo vai sendo revelado através de flashbacks, mas, ao mesmo tempo que determinadas recordações lhe surgem na mente, outros pequenos detalhes parecem se manter submegidos, como se fatos obscuros (ou até mesmo trágicos) quisessem continuar enterrados ou esquecidos.

Há quem diga que “O Paciente Inglês” é uma excelente peça cinematográfica, mas que se torna cansativa e perde o fôlego duarante alguns momentos devido a sua extensa duração (a história é contada ao longo de quase três horas). Entretanto, essa crítica é totalmente enfraquecida quando levamos em conta que, no melhor estilo do cinema clássico, o longa se configura como um grande épico perdido entre as ligeiras narrativas dos principais filmes hollywodianos dos anos 90. Árida, amarga e poética, a direção de Minghella é admirável, pois consegue manter a atenção do espectador de maneira eficiente do início ao fim da projeção.

"The English Patient" (1996) de Anthony Minghella - Miramax [us] | Tiger Moth Productions

Um Drink no Inferno (From Dusk Till Dawn, Estados Unidos, 1996)

Direção: Robert Rodriguez

Filme que estabelece a marca definitiva da notória colaboração entre os amigos Quentin Tarantino e Robert Rodriguez, “Um Drink no Inferno” é destacado por representar uma ode ao gênero exploitation e uma louvação encarniçada aos filmes de terror contemporâneos a ele. Sua história foi concebida por Robert Kurtzman, famoso nos meios de produção do cinema estadunidense por seus trabalhos com efeitos especiais e maquiagens protéticas. Kutzman foi, inclusive, a primeira pessoa a contratar e pagar para que Tarantino desenvolvesse o roteiro de um longa que não fosse o seu. Por mil e quinhentos dólares, o já premiado diretor e roteirista aprimorou e reescreveu um argumento baseado neste conto curto sobre um (previamente pensado) filme de ação envolto por uma atmosfera sombria e paramentado por elementos trash.

Acusados por promoverem um sangrento massacre após um assalto à banco no Texas, os irmãos Seth Gecko (George Clooney) e Richard Gecko (Quentin Tarantino) agora são procurados pela polícia como uma dupla de criminosos ameaçadores e sem escrúpulos. Em fuga, os dois sequestram o ex-pastor Jacob Fuller (Harvey Keitel) e seu casal de filhos (Juliette Lewis e Ernest Liu) afim de conseguirem atravessar a fronteira, chegando ao México. Na busca perturbada por um esconderijo temporário, o grupo acaba se refugiando na Titty Twister, uma estranha casa noturna aberta por toda a madrugada e frequentada por clientes muito peculiares.

Motoqueiros mal-encarados, caminhoneiros afoitos e transeuntes dementes que consomem doses cavalares de bebidas, violência e sensualidade (principalmente durante a arrebatadora e estonteante participação de Salma Hayek) preenchem esse ambiente desvairado, sádico e “pandemoniado”, dando a tônica perfeita para o inesperado plot twist de uma narrativa insana. Um desenrolar exagerado, mórbido e bizarro, no melhor sentido das palavras.

Para conseguir desfrutar um modesto, porém significativo sucesso nas bilheterias à época de seu lançamento, “Um Drink no Inferno” se aproveitou da crescente parceria Rodriguez/Tarantino ao longo da segunda metade da década de 90 e pegou carona no incontestável carisma de George Clooney, que brilhava como um dos protagonistas da série “Plantão Médico” (1994 - 2009). Alvo constante de críticas cruéis, o filme ganhou o status de cult movie ao longo dos anos justamente por esbanjar autenticidade na construção de diálogos inteligentes (cunho de uma assinatura poderosa); nas utilizações perfeitas de fotografia e trilha sonora; e na homenagem enxuta e sincera aos gêneros que pretendia reverenciar, sem criar novos códigos, mas divertindo e surpreendendo o espectador de forma positiva.

"From Dusk Till Dawn" (1996) de Robert Rodriguez
Dimension Films [us] | A Band Apart [us] | Los Hooligans Productions [us] | Miramax [us]

Ondas do Destino (Breaking the Waves, Dinamarca | Suécia | França | Holanda | Noruega | Islândia | Espanha, 1996)

Direção: Lars von Trier

Inquestionavelmente belo, “Ondas do Destino” é um drama amargo e dilacerador que se apoia na sensibilidade poética para explicar o transcendentalismo do amor incondicional e escancarar a ineficiência de algumas instituições religiosas. Bess McNeill (Emily Watson) vive em um povoado católico e ultraconservador do norte da Escócia. Apaixonada e feliz, a jovem se casa com Jan Nyman (Stellan Skarsgård), um dinamarquês que trabalha em uma plataforma petrolífera no Mar do Norte e que, mesmo não sendo bem-vindo, passa a morar nessa comunidade atulhada de beatos hipócritas. A relação do casal fica ainda mais intensa quando Bess descobre no sexo uma forma deleitável para amar sem discrição.

Entretanto, quando Jan retorna para o seu trabalho, acaba quebrando o pescoço ao sofrer um grave acidente. Ele recebe o diagnóstico de tetraplegia, uma situação que certamente o deixará incapacitado para o resto da vida. Bess, que tinha feito preces fervorosas por seu retorno incólume e por uma pronta melhora, passa a se sentir culpada por tudo o que aconteceu; e o seu drama só tenderia a aumentar, tendo em vista o que ainda por vir. Em completa condição de invalidez, Jan passa a sugerir que a esposa procure amantes, afim de que ela possa lhe contar detalhes sórdidos de suas aventuras sexuais fora do casamento.

Como em todo trabalho do polêmico diretor Lars von Trier, a temática central do longa tem caráter extremamente ofensivo, provocando certa estranheza e perplexidade ao espectador. O sentimento de desconforto é traduzido por uma ambiguidade explícita quando tão prontamente percebemos que, mesmo na insana relação com meros desconhecidos, Bess continua amando e desejando o marido que permanece preso a uma cama de hospital. Encarando situações terríveis e incisivamente sacrificiais, a mulher passa a ser subjugada de maneira hostil pelos membros de sua ignóbil sociedade que, por mais que mantenham uma sordidez velada, acabam evidenciando a face mais ordinária, negativa e falsa do comportamento humano, tipicamente generalista.

Tendo participado anteriormente de apenas um trabalho na televisão britânica, Emily Watson teve, em “Ondas do Destino”, uma das estreias mais triunfais e promissoras da história do cinema. Pelo papel de Bess, a atriz já garantia a primeira de suas duas indicações ao Oscar de Melhor Atriz. O filme também teve uma carreira vitoriosa pelos festivais que passou, vencendo o César de Melhor Filme Estrangeiro e recebendo nomeações importantes no Globo de Ouro, no Independent Spirit Awards e no Festival de Cannes.

"Breaking the Waves" (1996) de Lars von Trier
Arte [fr] | CoBo Fonds [nl] | Memfis Film [se] | Zentropa Entertainments [dk]

Para conhecer ou relembrar os filmes apresentados anteriormente na nossa retrospectiva, basta acompanhar os artigos navegando pela nossa página ou clicando nos links correspondentes, que seguem logo abaixo:

PARTE I                        PARTE II

E não deixem de conferir, na próxima semana, a conclusão de mais uma revisão cinematográfica com os últimos cinco filmes listados na Parte IV. Prometemos revelar mais alguns títulos incríveis!

Até lá...

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

20 Filmes que completam 20 Anos em 2016 | Parte II

O panorama sombrio que retrata uma juventude transviada inserida na desiludida sociedade dos anos 90; um filme que sobrevive pela discussão dicotômica do embasamento fraco de seu roteiro versus o delírio visual provocado por seus efeitos especiais; a original e controversa adaptação cinematográfica de uma das tragédia mais famosas de William Shakespeare; a compreensão das frustrações e dos dilemas sociais através do antagonismo sentimental que aproxima ou distancia o amor, o sexo e a morte; e o filme responsável por repaginar os gêneros do terror e do horror, traduzindo os seus códigos e transferindo a angústia e o medo para os dramas reais do mundo contemporâneo.

Continue acompanhando a retrospectiva especial que o Rotina Cinemeira faz ao longo deste mês de novembro. Estamos apresentando 20 importantes trabalhos produzidos e lançados no ano de 1996 que, cada um à sua maneira, tentam manter o fôlego e chegar vigorosos em 2016, completando os seus 20 anos. Filmes que, se ainda não estão, já deveriam estar nas estantes (ou nos HDs) de qualquer cinéfilo.

Trainspotting - Sem Limites (Trainspotting, Reino Unido, 1996)

Direção: Danny Boyle

Baseado no polêmico romance do escritor escocês Irvine Welsh, “Trainspotting - Sem Limites” é um exemplo genuíno de clássico instantâneo, não só por ter se transformado em um excepcional fenômeno de bilheteria no Reino Unido e nem por ter sido amplamente elogiado pela crítica ao redor do mundo. O segundo longa do diretor inglês Danny Boyle representou um verdadeiro estrondo cinematográfico, tornando-se um dos trabalhos mais cultuados dos anos 90; obra que sobrevive muito bem à passagem do tempo justamente por delinear e escancarar o retrato fiel de uma adolescência espúria, transviada e rebelde.

Na gíria da juventude escocesa, “trainspotting” significa uma atividade insensata que não possui a menor concepção de responsabilidade, algo tolo ou desponderado que se faz exclusivamente para passar o tempo. A expressão resume com exatidão a vida de Renton (Ewan McGregor), um jovem profundamente imerso no mundo das drogas e em constante luta para se libertar do vício, muito embora continue mantendo um completo fascínio pela euforia que o entorpecimento lhe proporciona. Em meio a recaídas e na companhia de amigos igualmente desajustados, o jovem suburbano perambula sem rumo pelas ruas de Edimburgo se embebedando em pubs e procurando qualquer tipo de confusão.

Fugindo do cotidiano banal e renunciando ao destino de se tornarem jovens sem perspectivas para a vida adulta, conhecemos Sick Boy (Jonny Lee Miller), um traficante casual e especialista em filmes de James Bond; Spud (Ewen Bremner), um sujeito que ainda tenta procurar emprego, mas nunca consegue por se julgar um tremendo fracassado; e Begbie (Robert Carlyle), um psicopata intempestivo e violento que arruma briga com qualquer pessoa que o provoque, ou não. Junta-se ao grupo Tommy (Kevin McKidd), que não pode ser considerado viciado, mas que eventualmente acaba seguindo os mesmos passos dos companheiros. A heroína é o barato predileto, capaz de produzir euforia extrema em uma única picada, um breve alívio que dura o tempo necessário para abrandar os problemas e rebaixar a nossa condição de existência ao denominador zero.

O panorama controverso e nada convencional explanado por “Trainspotting - Sem Limites” é duro, sombrio e desolador. Sobretudo porque a rotina alucinante vivida por esses jovens não vinha às telas para promover e levantar a bandeira do livre uso das drogas. De maneira inteligente, sem moralismos e sem meia palavras, Boyle conseguiu traduzir a mensagem de desesperança que Welsh pretendia transmitir ao publicar seu livro no início da década de 90.

"Trainspotting" (1996) de Danny Boyle - Channel Four Films [gb] | Figment Films [gb]
The Noel Gay Motion Picture Company

Twister (Twister, Estados Unidos, 1996)

Direção: Jan de Bont

O holandês Jan de Bont sempre foi um excelente cinegrafista e trabalhou como diretor de fotografia em excelentes filmes, muitos deles em parceria com o compatriota Paul Verhoeven; isso aconteceu bem antes de ambos deixarem a Europa para construir suas carreiras em Hollywood. A sintonia fina e a maneira como de Bont operava suas câmeras foram essenciais para que ele desenvolvesse algumas características peculiares e estabelecesse uma maior afinidade com o gênero de ação, responsável também pela tônica impressa em todos os seus cinco longas, incluindo o terror “A Casa Amaldiçoada” (1999).

Entretanto, foi o seu primeiro trabalho como diretor que provocou grande estouro. O eletrizante “Velocidade Máxima” (1994) foi elogiado tanto pelo público quanto pela crítica especializada. “Twister”, o projeto seguinte, foi recepcionado com o mesmo alvoroço, mas não construiu uma carreira de sucesso e sequer obteve reconhecimento semelhante. Produzido pela Amblin Entertainment de Steven Spielberg, o filme conta a história de dois grupos de caçadores de tempestades rivais que, durante uma tormenta sem precedentes no deserto de Oklahoma, pretendem entrar para a história do mundo científico ao tentar implantar sensores em tornados. Os dispositivos iriam transferir para um computador informações necessárias para prever as suas chegadas nas cidades, prevenindo assim maiores catástrofes. A frente de uma das equipes está a Doutora Jo Harding (Helen Hunt), uma jovem obcecada pela ideia de enfrentar tornados. Ainda criança a cientista presenciou a morte do pai, impiedosamente sugado por um destes turbilhões de vento.

Momentaneamente elencado como o filme favorito de muitos adolescentes da década de 90, “Twister” encanta pelos efeitos especiais oferecidos; funciona como um divertido espetáculo visual digno das melhores sessões da “Sessão da Tarde”, mas sem nunca passar disso. A honesta interpretação de Helen Hunt, por exemplo, representa a tentativa falha de sustentar o filme por um eixo dramático diluído pela ação. Fora isso, percebemos nas revisões o quanto o filme envelhece mal, chegando ao ponto de constatarmos que a aberração científica proposta pelo roteiro não sublima a antologia de imagens e a engenhosa gama de sons produzidos. Clássico ou não, o filme tem a seu favor a discussão dessa dicotomia para se manter vivo.

“Twister” ainda tem a curiosa marca de ter sido o primeiro filme da história de Hollywood (e de todos os Estados Unidos) lançado no formato de DVD, inicialmente programado como um teste para o sistema “Surround Soud 2.1”. Uma cópia relíquia, sem querer, histórica!

"Twister" (1996) de Jan de Bont - Warner Bros. [us] | Universal Pictures [us]
Amblin Entertainment [us] | Constant c Productions [us]

Romeu + Julieta (Romeo + Juliet, Estados Unidos, 1996)

Direção: Baz Luhrmann

A profusão visual e a estética glamorosa presentes nas obras do australiano Baz Luhrmann são marcas mundialmente conhecidas desde a sua tímida estreia como cineasta no longa “Vem Dançar Comigo” (1992). Mas foi apenas quatro anos mais tarde, com a original e controversa adaptação cinematográfica da tragédia shakespeariana “Romeu e Julieta”, que o talentoso diretor e roteirista ganhou projeção internacional no meio cinematográfico. Trabalhando a quatro mãos com o amigo e constante colaborador Craig Pearce, Luhrmann simplificou a trama focando somente nos episódios mais famosos da relação de discórdia entre Montéquios e Capuletos e, mesmo mantendo o requinte dos diálogos, foi certeiro ao trazer os acontecimentos para os dias atuais; o que acabou conquistando de forma implacável o público adolescente.

O hype de “Romeu + Julieta” entre os jovens foi ainda maior pela presença de Leonardo DiCaprio no elenco. À época, o novo ídolo teen garantia o bom desempenho nas bilheterias de todas as produções que participava, independente da qualidade das mesmas; e esse destaque é dado sem sequer mencionar o aumento do seu prestígio no mundo do cinema após estrelar dois filmes de sucesso: “Eclipse de uma Paixão” e “Diário de um Adolescente”, ambos de 1995. No embuste contemporâneo de Shakespeare, DiCaprio vive Romeu Montéquio, um jovem que acaba convencido pelo primo, Benvolio (Dash Mihok), e pelo melhor amigo, Mercutio (Harold Perrineau), a participar de um baile de máscaras realizado na fictícia Verona Beach.

A cidade de ares californianos torna-se o palco do descarrego de todas as animosidades dos Montéquios e da fúria ensandecida dos Capuletos, famílias que controlam as maiores parcelas dos conglomerados empresariais instalados por lá. O baile para onde Romeu, Benvolio e Mercutio estão se dirigindo trata-se, inclusive, de uma festa promovida por Fulgencio Capuleto (Paul Sorvino) para noivar sua filha, Julieta (Claire Danes), com o filho do governador, Dave Paris (Paul Rudd); tudo fruto de uma transação comercial estratégica. Como casamentos arranjados geralmente estão fadados ao fracasso, ao contrário dos romances proibidos, Romeu e Julieta se apaixonam instantaneamente e prometem ir às últimas consequências para manter viva uma relação ameaçada pela belicosa rivalidade entre suas famílias.

Carros substituem cavalos; espadas dão lugar a armas de fogo; e a música pop embala toda essa crônica sobre a morte (esta, a única imutável). Mesmo com imperfeições, “Romeu + Julieta” traduz de maneira responsável essa espécie de modernização suburbana de uma das mais famosas peças de William Shakespeare.

"Romeo + Juliet" (1996) de Baz Luhrmann - Bazmark Films [us] | Twentieth Century Fox Film Corporation [us]

Crash - Estranhos Prazeres (Crash, Canadá | Reino Unido, 1996)

Direção: David Cronenberg

Vencedor do Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes de 1996, onde também foi nomeado à Palma de Ouro, “Crash - Estranhos Prazeres” se envereda por particularidades da subcultura underground para levar-nos a compreender as frustrações e os dilemas do modo de vida predominante na sociedade contemporânea, sobretudo a ocidental. Distando da linha comportamental, mas sem se desprender inteiramente dela, estão os nossos maiores antagonismos sentimentais: o amor, o sexo, a morte e o distanciamento em relação aos outros seres humanos.

Baseado no romance homônimo do britânico J. G. Ballard, o filme tangencia o drama particular do publicitário James Ballard (James Spader), que tem a vida completamente abalada após se envolver em um violento acidente automobilístico. O seu carro atinge outro veículo no qual estava um casal; o homem acaba morrendo e a mulher, Helen Remington (Holly Hunter), fica por algum tempo internada em estado grave. Após o trauma e a natural fase de não aceitação, Helen decide procurar James que, por sua vez, passa a desenvolver uma doentia atração sexual por ela. Os dois se tornam amantes e passam a frequentar reuniões de um grupo de pessoas entediadas com suas relações afetivas que buscam elevar a satisfação e os prazeres libidinosos justamente na reconstrução de famosos desastres com automóveis.

O preenchimento do vazio estranhado destas pessoas se dá por um fetiche mordaz que é, ao mesmo tempo, inconsequente e compassivo. Afinal, para conseguir atingir o êxtase ou o orgasmo, as reconstituições são propositalmente sobrepensadas e feitas sem nenhuma segurança, aumentando de forma sensível a excitação e o risco para os participantes. Como consequência, a descoberta deste prazer atípico também faz com que James e sua esposa, Catherine (Deborah Kara Unger), revigorem o apetite sexual da relação permitindo que todas as fantasias comecem a ser realizadas, quase sempre no interior de carros acidentados.

Um dos trabalhos mais profundos e interessantes de David Cronenberg, “Crash - Estranhos Prazeres” merece constantes revisões, justamente por tratar da expressão de sentimentos da maneira mais complexa possível, utilizando o sexo e sua natural característica transgressora como plano de desenvolvimento, tudo dentro de uma temática constantemente mal vista ou mal interpretada no cinema. Classificar o filme como uma peça depravada de “soft-porn”, por exemplo, representa somente uma tentativa fracassada de rechaçar a verdadeira mensagem que ele transmite: a de que todos nós somos movidos por um comburente mais forte que o amor e a morte.

"Crash" (1996) de David Cronenberg - Alliance Communications Corporation [ca]
Movie Network, The (TMN) [ca] | Recorded Picture Company (RPC) [gb] | Téléfilm Canada [ca]

Pânico (Scream, Estados Unidos, 1996)

Direção: Wes Craven

Grande representante do gênero de horror e maior nome dos filmes de terror para adolescentes, Wes Craven foi um dos principais responsáveis por colocar nas telas de cinema todos os nossos piores pesadelos. O diretor primava pelo entretenimento sem nunca deixar de lado o sadismo e o realismo brutal, características que sempre permeavam as narrativas de seus filmes e, sobretudo, definiam a funesta personalidade de suas principais personagens. Foi dessa forma que Craven obteve grandes elogios, conquistando reconhecimento já em seu primeiro trabalho, o amedrontador e controverso “Aniversário Macabro” (1972).

Entretanto, o dono do imaginário inventivo e fantasmagórico que foi capaz de idealizar “A Hora do Pesadelo” (1984), uma das obras-primas do terror moderno, entrava nos anos 90 espalhando dúvidas e incertezas sobre a sua real capacidade de criação com a produção de filmes que não empolgaram o público como, por exemplo, “As Criaturas Atrás das Paredes” (1991), hoje um clássico cult; e “Um Vampiro no Brooklyn” (1995), o perdoável deslize. Quando muitos davam como certa o fim de uma carreira relativamente curta, Wes Craven surpreende ao assinar “Pânico”, dando início a uma das franquias mais populares e bem-sucedidas de todos os tempos.

Com sucesso instantâneo e estouro assombroso nas bilheterias dos Estados Unidos, “Pânico” ainda conta com um dos prólogos mais assustadores e horripilantes da história do cinema. Em uma misteriosa chamada telefônica, um sujeito fanático ameaça a vida da jovem Casey Becker (Drew Barrymore), que só sobreviveria se respondesse corretamente às perguntas de um macabro quiz sobre os clássicos filmes de terror americanos. Já na trama principal, a inocente e virtuosa Sidney Prescott (Neve Campbell) não mede esforços para combater e sobreviver ao mesmo maníaco que apavorou Casey. A garota ainda contará com a ajuda de Gale Weathers (Courteney Cox), uma famigerada repórter sensacionalista que segue os rastros do serial killer, que se revela um completo trapalhão escondido atrás de uma (famosa) máscara ridiculamente medonha.

“Pânico” foi o grande responsável por repaginar o gênero de terror, traduzindo os seus códigos e transferindo a angústia e o medo para os dramas reais da contemporaneidade; além de ter possibilitado que Wes Craven brincasse com os próprios clichês e convenções dos filmes que o tornaram famoso. A sua franquia se lançou com uma sequência imediata, “Pânico 2” (1997), e uma mais vindoura, “Pânico 3” (2000); anos mais tarde veio “Pânico 4” (2011), último projeto comandado pelo diretor, falecido no ano passado.

"Scream" (1996) de Wes Craven - Dimension Films [us] | Woods Entertainment [us]

Para ver ou relembrar os filmes que foram apresentados na PARTE I da nossa retrospectiva, basta visitar o artigo clicando no link AQUI.

E continuem acompanhando a nossa revisão cinematográfica, que retornará com PARTE III já na próxima semana!

Até lá...

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

20 Filmes que completam 20 Anos em 2016 | Parte I

Em pouco mais de 120 anos de história, o Cinema foi capaz de produzir um número incontável de histórias que habitam o imaginário de milhões (ou até bilhões) de espectadores e fãs ao redor do mundo. Alguns dos filmes já nascem como clássicos instantâneos; outros esperam algum tempo para receberem a devida atenção ou o reconhecimento do público para que, enfim, também possam ser considerados obras inesquecíveis e fundamentais.

Como parte do compromisso que firmamos na publicação anterior, comece a acompanhar a retrospectiva que o Rotina Cinemeira fará, ao longo do mês de novembro, elencando 20 importantes títulos produzidos e lançados no ano de 1996. Filmes que sobrevivem ao tempo e que mantém o vigor e o fôlego, completando os seus 20 anos em 2016. Títulos que, se ainda não estão, já deveriam estar nas estantes (ou nos HDs) de qualquer cinéfilo.

Segredos e Mentiras (Secrets and Lies, França | Reino Unido, 1996)

Direção: Mike Leigh

Desde o início dos anos 70, a conceituada e premiada carreira do britânico Mike Leigh como escritor e diretor de peças teatrais sempre caminhou em consonância com suas incursões pelo cinema. Constantemente taxado de ríspido, Leigh despeja toda a sua animosidade ao tecer, tanto nos palcos quanto nas telas, ácidas críticas ao comportamento da sociedade contemporânea somado a diferença de classes escancaradamente mascarada de seu país. “Segredos e Mentiras” não foge dessa regra, configurando-se como um drama meio amargo que desnuda a realidade e reforça com contornos melancólicos a vida de uma família perturbada por acontecimentos que emergem do passado.

Após a morte de sua mãe de criação, Hortense (Marianne Jean-Baptiste) decide sair à procura de sua mãe biológica. A jovem é negra e tem uma vida confortável trabalhando como optometrista em Londres. Em seus esforços para retornar às suas raízes, Hortense acaba conhecendo e se reconhecendo em Cynthia (Brenda Blethyn), uma operária branca de meia idade que entregou a filha para adoção há alguns anos sem nunca ter a visto. Amável e solitária, a frágil senhora já possui família formada, mas vem enfrentando uma série de dificuldades pessoais.

Depois de uma emocionante reconciliação, mãe e filha tornam-se melhores amigas. Buscando um melhor entendimento da vida, as duas ainda se deparam com segredos deliberadamente revelados no clímax de uma tensa reunião familiar, tendo como pivôs o irmão mais novo de Cynthia, Maurice (Timothy Spall); sua esposa Monica (Phyllis Logan); e Roxanne (Claire Rushbrook), filha ilegítima de Cynthia.

Diante da temática forte e catártica, coube a Leigh tomar uma das decisões mais acertadas em relação ao projeto: deixar que maior parte do roteiro permanecesse aberto durante o processo de filmagem. No argumento, coube ao diretor apenas definir e direcionar as personagens no transcorrer das ações e na participação das mesmas no destino final da trama. Isso possibilitou que grande parte das relações entre mãe e filha pudessem ser construídas livremente por Brenda Blethyn e Marianne Jean-Baptiste durante os ensaios. As interpretações improvisadas garantiram a consistência e o realismo que o filme necessitava, imprimindo um caráter verdadeiramente sublime e existencialista.

Vencedor da Palma de Ouro de Cannes em 1996, “Segredos e Mentiras” é considerado o longa metragem mais aclamado e acessível de Mike Leigh, justamente por, no final das contas, assumir um caráter mais otimista em relação à vida, muito embora as tristezas e alegrias possam ser tratadas aqui em tom superlativo.

"Secrets and Lies" (1996) de Mike Leigh - Channel Four Films [gb] | CiBy 2000 [fr] | Thin Man Films [gb]

Todos Dizem Eu Te Amo (Everyone Says I Love You, Estados Unidos, 1996)

Direção: Woody Allen

Com muito bom humor e de forma absolutamente despretensiosa, Woody Allen talvez tenha levado para as telas em “Todos Dizem Eu Te Amo” a trama mais leve, sensível e divertida dentre todas as suas produções na década de 90. Como sempre, a inteligência empregada nos ricos diálogos sobre as situações mais corriqueiras de nossas vidas se sobressai, fazendo com que nossos sentimentos mais inomináveis se alumiem para aquele que, possivelmente, seja o mais importante e fundamental de todos: o amor. E o trunfo dessa simpática e nada convencional comédia romântica vem na brincadeira com o gênero musical, homenageando à altura os maiores clássicos do período clássico hollywoodiano.

Nesse reverencioso universo se encontra DJ (Natasha Lyonne), uma jovem nova-iorquina que divide com o espectador as histórias de sua família e da alta sociedade de Manhattan. Ela vive com a mãe, Steffi (Goldie Hawn), e o padrasto, Bob (Alan Alda), casados há bastante tempo; e, regularmente, recebe visitas do pai, Joe (Woody Allen), que continua um grande amigo de toda a família.

Joe vive em Paris, trabalha como escritor e decide, após mais uma desilusão amorosa, viajar para Veneza a fim de se reencontrar. Lá, acaba conhecendo e se apaixonando por Von (Julia Roberts), uma historiadora infeliz com seu casamento. Ao mesmo tempo presenciamos a comemoração do noivado de Holden (Edward Norton) e Skylar (Drew Barrymore), meia-irmã de DJ e filha de Bob e de Steffi, esta última que ainda tem que saber lidar com desarranjada e definitiva aparição de Charles Ferry (Tim Roth), um detento recém-libertado. Por fim, todo esse emaranhado de situações e interações acabam sendo mesmo amarradas por músicas que embalam incandescentes paixões.

“Todos Dizem Eu Te Amo” conseguiu uma tímida indicação ao Globo de Ouro na Categoria de Melhor Filme de Comédia ou Musical; mas foi justamente por não almejar uma carreira triunfante ou glamorosa que o filme não recebeu tantas nomeações em festivais internacionais. Contudo, há de se louvar aqui o trabalho e a dedicação de todos os integrantes do elenco que cantaram em todos os números musicais sem sequer precisar de dubladores. A exceção foi Drew Barrymore, que conseguiu convencer a equipe de produção que era uma péssima “cantora de chuveiro” e que se sairia ainda pior em cena, mesmo sabendo que a ideia inicial de Woody Allen fosse mostrar o comportamento natural de pessoas sem o dom do canto nas performances musicais de suas personagens.

"Everyone Says I Love You" (1996) de Woody Allen
Miramax [us] | Buena Vista Pictures [us] | Magnolia Productions [us] | Sweetland Films

Lone Star - A Estrela Solitária (Lone Star, Estados Unidos, 1996)

Direção: John Sayles

O caso de um assassinato mal resolvido em uma cidade texana na fronteira com o México toma-se como mote inicial e representa a faísca que desencadeia a sucessão de intrigantes acontecimentos de “Lone Star - A Estrela Solitária”, uma crônica sobre o choque de culturas muito presente nessa região dos Estados Unidos, bem como uma parábola sobre o obscurantismo das relações pessoais, dos segredos e das memórias que são enterradas com o tempo. O argumento ágil, diligente e ao mesmo tempo sutil que o diretor John Sayles emprega na construção do roteiro do longa (sendo inclusive nomeado ao Oscar nessa categoria) deixa praticamente exposta as necessidades que o ser humano tem de extrapolar os seus limites e revirar o seu passado.

Quando o esqueleto de seu antecessor é encontrado em um deserto próximo à Rio County, o xerife Sam Deeds (Chris Cooper) inicia uma investigação sem precedentes que envolve praticamente todos os figurões da cidade. Sam desconfia que o crime possa estar relacionado ao antigo conflito que seu falecido pai, Buddy Deeds (Matthew McConaughey), travava com Charlie Wade (Kris Kristofferson) há décadas atrás; ambos também foram donos da estrela de xerife da qual Buddy, tido por todos como um mito e herói local, tomou em substituição imediata a Charlie, um “homem da lei” notoriamente corrupto e racista.

Os flashbacks são entrelaçados ao processo investigativo de Sam e montam a transição entre o passado e o presente através de planos sequência de forma extremamente audaz e criativa, ajudando o espectador a entender o que realmente aconteceu naquela época e de que modo os embates e as ações dos antigos rivais afetaram Rio County ao longo dos anos. A princípio, o romance policial aparentemente se transforma em uma trama detetivesca com contornos de western sendo que, na verdade, ele escancara e pretende estudar as características de formação do Texas, além do desconforto habitual que a formação multiétnica do Estado continua proporcionando sempre que alguém tenta reescrever ou escrever a História, deixando sempre profundas e incuráveis cicatrizes para o futuro.

Comportamentalista, “Lone Star - A Estrela Solitária” mostra que lidar com várias culturas diferentes ao mesmo tempo tentando enfrentar de forma deliberada os graves problemas gerados pela xenofobia e por conflitos raciais acabam por transpassar e afetar tanto o campo político quanto o pessoal; tudo está interligado. E sabemos que vida frustra e subverte, mas é preciso ter coragem para seguir em frente.

"Lone Star" (1996) de John Sayles - Columbia Pictures Corporation [us] | Castle Rock Entertainment [us] | Rio Dulce

Marte Ataca! (Mars Attacks!, Estados Unidos, 1996)

Direção: Tim Burton

Estamos longe de querer transformar o comentário inicial em uma alfinetada carregada de ironia, mas é certo que em nenhum momento “Marte Ataca!” teve pretensões de se tornar um projeto grandioso, ou até mesmo de querer ser considerado pela crítica como um bom filme. Estranhamente engraçado, chegando a beirar o tosco, o filme reflete a fuga do diretor Tim Burton dos seus habituais padrões sombrios, maquiagens alvacentas e cabelos arrepiados. É claro que todos os seres esquisitos de seu universo continuarão presentes aqui, mas dessa vez o espanto vem de fora, não de muito longe.

A ameaça vem do planeta vizinho, e os marcianos são o retrato absolutamente perfeito das caricaturas que imaginamos desde sempre: seres verdes raquíticos, cabeçudos e com olhos esbugalhados e curiosos. Eles simplesmente invadem o nosso planeta com o intuito de se divertir, destruindo tudo que veem pela frente, transformando a Terra em um imenso playground.

A obsessão da humanidade pelo desconhecido e pelo encontro com vidas inteligentes que habitam o Universo fora à Terra são mais antigos que a própria ciência enquanto prática sistemática e, nesse mesmo curso, o gênero da ficção científica surgiu para legitimar nossos anseios e devanear sobre possíveis contatos extraterrenos. Distante da seriedade, Burton homenageia todos os clássicos de Pulp Sci-Fi dos anos 50, como “O Dia em que A Terra Parou” (1951), “A Guerra dos Mundos” (1953) e “Vampiros de Almas” (1956); bem como os filmes-catástrofe da década de 70, sempre recheados de grandes astros e estrelas, como “O Destino do Poseidon” (1972) e “Inferno na Torre” (1974).

Com relação ao elenco, inclusive, “Marte Ataca!” não deixa a desejar em relação a nenhuma grande produção de Hollywood no período. A lista renomada de atores que participaram do projeto é espetacular, contando com Annette Bening, Glenn Close, Danny DeVito, Pierce Brosnan, Sarah Jessica Parker, Michael J. Fox e a jovem e promissora Natalie Portman. Reunir essa constelação não deve ter sido uma tarefa muito fácil; fazê-los encarnar impiedosos palermas, muito menos; o que não significa dizer que todos realizaram más interpretações, claro! Exemplo maior é Jack Nicholson que, interpretando o patético Presidente dos Estados Unidos que é tido como a única esperança de frear a iminente ameaça à existência da espécie humana, confirma a atmosfera de paródia que o filme pretendia alcançar e o coloca como comédia de humor negro e um tributo honesto a um gênero frequentemente classificado como menor.

"Mars Attacks!" (1996) de Tim Burton - Tim Burton Productions [us] | Warner Bros. [us]

Jerry Maguire: A Grande Virada (Jerry Maguire, Estados Unidos, 1996)

Direção: Cameron Crowe

Em 1996 Tom Cruise já era um dos queridinhos da América, havia protagonizado alguns pares de excelentes filmes e já tinha no currículo uma indicação ao Oscar por “Nascido em 4 de Julho” (1989).  O jovem astro estava preparado para subir mais um degrau na carreira e entrar definitivamente para o hall das “super-celebridades”. Pela primeira vez, Cruise participava como produtor em um projeto cinematográfico, nada mais menos nada menos que o estouro comercial e futura franquia de sucesso “Missão: Impossível”. Ao mesmo tempo, ele decidia apostar no roteiro escrito pelo amigo e diretor Cameron Crowe, aceitando também o convite para protagonizar a cativante comédia dramática “Jerry Maguire: A Grande Virada”.

Cruise interpreta o personagem título do filme, um procurador esportivo bem-sucedido que enfrenta um dilema pessoal ao questionar a sua própria existência, o propósito de suas ações e o seu verdadeiro lugar no mundo. Jerry Maguire vivia intensamente, era respeitado e admirado pelos colegas, conquistava os melhores clientes e fechava os contratos mais rentáveis do ramo. A crise de consciência vem quando um de seus principais atletas sofre uma grave lesão, fazendo-o refletir sobre a maneira cruel como tratava todos os seus representados. O empresário cai em desgraça, é demitido da agência que trabalhava e perde todo o seu prestígio.

Motivado por essa epifania moral, Jerry decide colocar em prática uma nova filosofia de trabalho, fundando uma organização independente e trazendo consigo a colega e principal incentivadora, Dorothy Boyd (Renée Zellweger). Além disso, ele acaba mantendo apenas um cliente, o famoso e problemático jogador de futebol americano Rod Tidwell (Cuba Gooding Jr., vencedor do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante na ocasião); ambos ajudaram na transformação do protagonista. E é através da profunda relação de Jerry com Dothy e Rod que podemos observar e discutir aspectos fundamentais e vitais como a amizade, a solidariedade, a formação de caráter e a imensa capacidade e desejo de mudança que todo ser humano carrega dentro de si.

Declaradamente inspirado na carreira do agente esportivo Leigh Steinberg (que auxiliou na produção como consultor técnico durante as filmagens), “Jerry Maguire: A Grande Virada” trata de construir, em linhas gerais, uma severa crítica ao desconcertante e problemático caminho pelo qual a sociedade global vem caminhando há algumas décadas: àquele no qual a vida é tratada como uma mercadoria habitual, onde todos acreditam cegamente que o que mais importa são o poder, a fama e o dinheiro.

"Jerry Maguire" (1996) de Cameron Crowe - TriStar Pictures [us] | Gracie Films [us]

Não deixem de continuar acompanhando nossa retrospectiva e aguardem a Parte II na próxima semana!