sábado, 31 de dezembro de 2016

Os Dez Melhores Filmes de 2016

Este ano foi tão corrido que, de certa forma, vou utilizar a mesma introdução de 2015 para anunciar o nosso último artigo da temporada:

Sábado, dia 31 de dezembro. É desesperador olhar para o relógio e perceber que 2016 já está quase acabando e que a nossa a prometida lista dos com Os Dez Melhores Filmes do Ano ainda não foi lançada. Mas não precisamos nos preocupar: afinal, ela acaba de sair do forno!

Como a seleção e a análise de cada um dos filmes demorou mais tempo do que o previsto para ser produzida e publicada, não vamos nos alongar nos comentários, deixando que os mesmos se desenvolvam apenas através das análises sobra cada uma dessas incríveis obras. Sempre contando com as “injustiças” cometidas, a relação final tentará não decepcionar ninguém!

E antes que digam que este ou aquele filme foi lançado em um ano anterior ao de 2016, ou que tal produção foi exibida pela primeira vez em determinado Festival, lembramos que o critério que sempre utilizamos para definir os filmes que integrarão essas listas especiais de fim de ano obedecem a seguinte regra: produções que estrearam em 2016 nas salas de cinema do Brasil através do circuito comercial; ou aquelas lançadas diretamente em Home Video ou VOD.

Outra observação importante: “Os Oito Odiados” (2015) sempre foi um dos candidatos mais fortes a fazerem parte desta seleção, mas como o oitavo longa de Quentin Tarantino teve sua pré-estreia marcada para a última semana do ano passado em algumas capitais, resolvi deixa-lo de fora e abrir espaço para outras produções menos lembradas, que me encantaram da mesma forma e que também merecem ser apreciadas por aqueles que ainda não as conferiram.

Vale lembrar que os filmes “Animais Noturnos” (2016) de Tom Ford; e “Eu, Daniel Blake” (2016) de Ken Loach, outros dois prováveis candidtos a figurarem nesta lista, estrearam somente no dia 29 de dezembro nas salas de cinema brasileiras, momento em que a nossa lista já estava definida e fechada para a edição.

Após essa série de esclarecimentos, não custa lembrar que, assim como a seleção dos melhores filmes brasileirosrealizada no meio desta semana, essa listagem também não é longa, mas os comentários a respeito de cada um dos filmes eleitos acabaram se estendendo um pouco mais do que o esperado.

Então, sem mais conversas, vamos aos Os Dez Melhores Filmes de 2016 (em ordem decrescente):

10º. LUGAR: “O ABRAÇO DA SERPENTE”

(El Abrazo de la Serpiente, Colômbia | Venezuela | Argentina, 2015) - de Ciro Guerra

Data da Estreia: 18 de fevereiro de 2016

Inspirado nos diários de viagem registrados pelo etnologista alemão Theodor Koch-Grünberg e pelo botânico estadunidense Richard Evans Schultes, “O Abraço da Serpente” resgata algumas das mais belas memórias que marcaram as primeiras campanhas de exploração da Amazônia Colombiana. Através da jornada de intensa transformação destes dois pesquisadores, o longa acaba propondo uma salutar discussão sobre o grau de importância e sobre os verdadeiros propósitos que vários dos estudos envolvendo os povos indígenas sul-americanos representaram para a comunidade científica mundial, sempre em face da dominação e do extermínio dos mesmos.

Entrecortados e interligados, os fragmentos das missões de Theo (Jan Bijvoet) e Evan (Brionne Davis) estão distados por um período de, aproximadamente, quarenta anos. Entretanto, os desdobramentos das experiências indigenistas de cada um deles se aproximam de uma forma muito peculiar, principalmente por comungarem dos mesmos objetivos e pelo fato de terem sido conduzidas pelo mesmo guia, Karamakate (Nilbio Torres na fase jovem; e Antonio Bolivar na fase experiente), um xamã que encontrou – em seu completo isolamento – um terreno propício para continuar mantendo vivas as suas tradições, sobretudo por ainda resistir como o único sobrevivente de sua tribo.

Repleto de significados, os caminhos traçados e percorridos pelas expedições vão sendo remodelados por conceitos filosóficos. Na prática, a aventura acaba se transformando em uma fabulosa saga de autorreflexão dos personagens, que têm as suas crenças e convicções colocadas à prova a partir do raro contato com uma planta sagrada que possui excelentes propriedades de cura; um bálsamo poderoso plenamente capaz de alterar os níveis de consciência e proteger qualquer indivíduo das situações de total descontrole.

Arrojado e inteligente, o diretor Ciro Guerra abandona algumas das principais convenções cinematográficas e – no melhor sentido da expressão – desrespeita a habitual linearidade empregada na maioria das reconstituições históricas.  A narrativa se desenvolve com suavidade, sem necessitar de um esforço tangencial que venha traduzir qualquer mensagem que possa estar escondida nas suas entrelinhas. Eficiente, o filme alcança o seu propósito ao tratar com simplicidade a descomunal relação homem-selva, remetendo aos primeiros contatos entranhados entre civilizações; à curiosa aproximação de diferentes culturas; e à absoluta relação de desconfiança que vai sendo contornada pelos atípicos laços de amizade construídos entre Karamakate e os estrangeiros.

Sua poesia é reforçada pela belíssima fotografia em preto e branco, ao passo em que o realismo é ditado pela crueldade do homem branco, pela imposição da supremacia étnica e pela desconstrução étnico-cultural promovida através do escambo, da evangelização ou da exploração dos recursos naturais abundantes, por exemplo. Épico contemporâneo do cinema latino, “O Abraço da Serpente” envolve a vida e a morte de maneira extremamente fascinante. Um tour de force eloquente que trabalha, com profunda inventividade e misticismo, as bases mais singulares da antropologia.

"El Abrazo de la Serpiente" (2015) de Ciro Guerra - Ciudad Lunar Producciones [co] | Caracol Televisión [co]

9º. LUGAR: “CREEPY”

(Kurîpî: Itsuwari no Rinjin, Japão, 2016) - de Kiyoshi Kurosawa

Data da Estreia: 17 de novembro de 2016

A trama ardilosa e extremamente envolvente de “Creepy” nos conecta ao que existe de melhor no thriller psicológico japonês. Trazendo o gênero de terror para a atmosfera eletrizante dos filmes policiais, Kiyoshi Kurosawa nos apresenta um projeto convincente, instigante e profundo. A produção vem carregada por um inegável primor técnico – tanto na estética quanto na construção narrativa – características que também acabam nos remetendo a um dos maiores sucessos do diretor, o insano e original “A Cura” (1997).

Após se ver envolvido em um grave incidente que o deixou absolutamente traumatizado, Takakura (Hidetoshi Nishijima) decide se aposentar do ofício de policial investigativo e passa a trabalhar como professor de psicologia criminal em uma conceituada universidade de Tóquio. Esperando que a nova carreira lhe ofereça um pouco mais de tranquilidade, ele resolve se mudar para um afastado bairro do subúrbio junto de sua esposa, Yasuko (Yûko Takeuchi). Não demora muito para que o casal comece a estabelecer protocolares laços de amizade com seus vizinhos imediatos, os Nishino. A reservada família é composta por um senhor estranhamente simpático (Teruyuki Kagawa) que, com o auxílio da filha adolescente, cuida de sua esposa enferma.

A nova rotina de Takakura transcorria com total serenidade no conforto da nova casa, mas o fato dele utilizar parte de sua experiência para ministrar suas aulas não permitia a sua completa desvinculação das atividades da antiga corporação. Embora estivesse plenamente afastado de suas funções como detetive, ele não conseguiu conter a curiosidade quando Nogami (Masahiro Higashide), um ex-colega de serviço, lhe pediu um conselho técnico para tentar concluir as investigações de um misterioso caso ocorrido há quase seis anos, no qual uma família inteira havia desaparecido sem que os corpos nunca tivessem sido encontrados. Aparentemente complexo e sem uma solução lógica, o enigma paira em suspenso até que uma série de esquisitas coincidências e o surgimento de inesperadas testemunhas começam a chamar a atenção de Takakura e Nogami.

Mesmo com um prólogo de tirar o fôlego, “Creepy” pode não conquistar o público instantaneamente. Afinal, grande parte da estrutura do longa é construída através de um estudo minucioso sobre o perfil psicológico de cada um dos personagens, além da proeminente e gradativa ambientação que vai sendo preparada para o seu clímax final. Aqui a psicopatia é concebida, tratada e trabalhada de forma latente, sendo absorvida e interpretada de maneira soberba pelo grande vilão da história que, apesar de ter o perfil e a identidade escancaradamente entregues durante o desdobramento das ações, pretendemos não revelar no corpo deste texto para não estragar a antecipação de alguns twists que são lançados ao longo do lancinante desenvolvimento do enredo. Arrepiante e bizarro, esse “embuste escatológico” se configurou como um dos melhores suspenses do ano.

"Kurîpî: Itsuwari no Rinjin" (2016) de Kiyoshi Kurosawa - Asahi Shimbun [jp] | Asmik Ace Entertainment [jp]
KDDI Corporation [jp] | Kinoshita Group [jp] | Kobunsha [jp] | Shochiku Company [jp]

8º. LUGAR: “JULIETA”

(Julieta, Espanha, 2016) - de Pedro Almodóvar

Data da Estreia: 7 de julho de 2016

Cercado por uma atmosfera enternecida e misteriosamente charmosa, o trabalho mais recente de Pedro Almodóvar explora as relações humanas de maneira singular, permitindo que o cineasta espanhol volte a criar um ambiente propício para se debruçar sobre a esfera emocional dos dilemas femininos. Experiência cinematográfica cativante, “Julieta” se comporta como um melodrama elegante que em nenhum momento oferece pausas para o público respirar. O clima de suspense é ditado pela mistura de sentimentos da personagem-título e embalado por uma trilha sonora tipicamente herrmanniana. Além disso, não podemos deixar de destacar seu esplendoroso visual, reforçado pela vivacidade de sua tradicional paleta de cores – ainda que toda essa a exuberância tenha sido apresentada de modo bem mais sóbrio desta vez.

O tom melancólico que marca o desenrolar dos acontecimentos transparece no semblante sofrido de Julieta (Emma Suárez), uma mulher de meia idade que vive em Madrid com o atual namorado, Lorenzo (Darío Grandinetti); os dois estão tratando de resolver as últimas pendências para se mudarem em definitivo para Portugal. Entretanto, os planos de Julieta mudam drasticamente, e o seu destino toma um rumo completamente inesperado após um encontro casual com Beatriz (Michelle Jenner), melhor amiga de sua filha durante a infância. Antía (Blanca Parés) não entra em contato com a mãe há mais de doze anos, desde quando abandonou o lar sem deixar nenhum contato.

Desestabilizada e com o coração coberto por feridas incicatrizáveis, Julieta decide encarar a realidade de frente, tentando correr atrás de um tempo que provavelmente não irá reconquistar e procurando se livrar das condenações do passado que insistem em lhe enfraquecer. Na esperança de retomar o contato com a filha, ela resolve voltar a morar em seu antigo apartamento e começa a escrever uma carta carregada de dor e de culpa, registrando as lembranças mais marcantes do período em que viveram juntas. Através de flashbacks, vamos conhecendo detalhes da juventude de Julieta (Adriana Ugarte) e do seu relacionamento com Xoan (Daniel Grao), pai da pequena e encantadora Antía (Priscilla Delgado).

Tomando como base uma série de contos da escritora canadense Alice Munro, Almodóvar assume o controle das ações ao construir um roteiro formidável e preciso. Entrelaçando toda a história da protagonista pelas duas fases mais extremadas e decisivas de sua vida, ele percorre caminhos supostamente óbvios para desvendar os segredos e as motivações de sua transformação. A previsibilidade fica apenas nas aparências, pois a trama é conduzida por um fluxo narrativo intenso que mantém contornos angustiantes do início ao fim da projeção. “Julieta” não é uma obra-prima, mas é a prova de que o diretor sempre tem algo a nos dizer e que ainda pode surpreender de maneira extremamente positiva quando se propõe a cumprir seus desafios particulares.

"Julieta" (2016) de Pedro Almodóvar - El Deseo [es]

7º. LUGAR: “TANGERINA”

(Tangerine, Estados Unidos, 2015) - de Sean Baker

Data da Estreia: 21 de janeiro de 2016

A assombrosa e ilimitada onda de lançamentos da cena independente vem nos presenteando com uma quantidade admirável de filmes corajosos que, de tempos em tempos, aprimoram as discussões sobre os variados modos de se fazer cinema. Alguns desses trabalhos acabam conquistando seu espaço dentro da singular lógica de distribuição e exibição, reagindo com firmeza ao esmagador domínio de mercado dos grandes estúdios através da realização de projetos inovadores (tanto nas técnicas utilizadas quanto nas temáticas abordadas). O crescente entusiasmo é reflexo da acelerada modernização e do incontido avanço do consumismo, que tornam o acesso à tecnologia cada vez mais facilitado. Este fenômeno é global e permite que a capacidade criativa de muitas pessoas seja disseminada instantaneamente.

Nesse panorama, determinadas peças cinematográficas procuram se diferenciar enquanto arte, ao passo que também tentam se encaixar nas lacunas reservadas para o entretenimento. Apesar de possuir uma carreira sólida e um currículo recheado por pares de títulos com valores reconhecidos pela crítica e pela indústria em geral, o diretor nova-iorquino Sean Baker revoluciona e subverte convenções ao rodar seu último filme de maneira muito curiosa. “Tangerina” foi inteiramente registrado pelas lentes da câmera de um iPhone 5s; deixando claro que nenhum maluco saiu ao léu para gravar munido somente de um aparelho celular. Mesmo com parcos recursos, foi necessário que a equipe de produção contasse com um aparato técnico mínimo, dispondo de adaptadores anamórficos, tripés e rebatedores de luz, por exemplo.

De qualquer forma, a proposta é muito interessante e os resultados desse esforço apresentam para o público uma incrível comédia dramática que acompanha as desventuras da garota de programa Sin-Dee Rella (Kitana Kiki Rodriguez), uma transexual que vagueia enraivecida pelas ruas de Los Angeles durante a véspera de Natal. Após retornar de uma curta temporada de 28 dias na a prisão, ela descobre, por meio de uma conversa sincera com sua melhor amiga, Alexandra (Mya Taylor), que o seu namorado e agenciador, Chester (James Ransone), está lhe traindo. Às lágrimas e com o coração partido, Sin-Dee parte para uma enciumada e frenética perseguição sentimental, afim de acertar as contas com Chester e com sua suposta amante, a cisgênero Dinah (Mickey O’Hagan).

Apesar dos momentos hilariantes, o clima melancólico insiste em pairar sobre a atmosfera hipnótica e alaranjada de “Tangerina”, afinal, a infidelidade e as desilusões amorosas são os assuntos mais recorrentes dessa audaciosa narrativa. Algumas nuances de realismo são ressaltadas pelo desenvolvimento de histórias secundárias – como no núcleo do pervertido taxista Razmik (Karren Karagulian) – que revelam bastidores provocantes encobertos pela dinâmica suburbana da “cidade dos anjos”. Apoiado pelas contagiantes atuações do elenco, o longa ainda contempla a ampla diversidade cultural californiana e debruça-se sobre as questões de gênero constantemente aprofundadas pelo segmento LGBT.

"Tangerine" (2015) - de Sean Baker - Duplass Brothers Productions [us] | Through Films [us]

6º. LUGAR: “CINCO GRAÇAS”

(Mustang, França | Alemanha | Turquia | Catar, 2015) - de Deniz Gamze Ergüven

Data da Estreia: 21 de janeiro de 2016

Surpreendente longa-metragem de estreia da cineasta turca Deniz Gamze Ergüven, “Cinco Graças” é conduzido por uma das narrativas mais poderosas e destemidas já apresentadas pelo impactante cinema de criação desde a virada do século. Trazendo para o centro das discussões um assunto abordado frequentemente por produções do extremo ocidente asiático, o filme apresenta uma coleção de imagens emocionantes, carregadas de uma poética e de um realismo tão profundos que chegam a transbordar na tela todas as amarguras e tristezas que só a crueldade do patriarcado ainda pode provocar.

As aulas chegaram ao fim em İnebolu, pequena cidade litorânea ao norte da Turquia. Lale e suas quatro irmãs saem com alguns colegas para comemorar o início das férias de verão e se divertem na praia de maneira descontraída e completamente inocente, menos aos olhos da comunidade ultraconservadora. As garotas são órfãs e estão sob os cuidados da avó e de um tio que, logo após uma série de boatos, decidem mantê-las confinadas dentro de casa, impondo uma condição de submissão e o pleno cumprimento dos costumes mais rígidos de sua religião. Enquanto isso, os seus casamentos vão sendo arranjados, um a um, ainda que precocemente.

A vida das meninas toma um rumo diferente, mas, mesmo trancafiadas, elas nunca deixam de desejar a liberdade, resistindo com firmeza aos limites estabelecidos. Toda a história é acompanhada do ponto de vista de Lale, mas a coesão do enredo faz com que as atrizes que interpretam as cinco irmãs sejam a alma de “Cinco Graças”, uma celebração da amizade e da cumplicidade entre pessoas que se amam profundamente.

Apesar da trama se desenvolver em outro país, o longa foi o representante francês na disputa do Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano. Isso ocorreu porque, em 2011, Deniz Gamze Ergüven foi uma das convidadas a participar do Atelier da Cinéfoundation, um evento patrocinado pelos organizadores do Festival de Cannes que convidam alguns dos realizadores mais promissores do mundo para participar de uma espécie de meeting, abrindo as portas para que co-produções internacionais consigam apoio necessário para acelerar os processos de finalização e acabamento. A diretora estava procurando suporte para desenvolver o seu primeiro projeto, intitulado “Kings”.

Foi durante esse encontro que ela conheceu a diretora francesa Alice Winocour, que estava divulgando “Augustine” (2012) na semana de realizadores em Cannes. Sem o financiamento mínimo para a aprovação de seu projeto, Deniz foi aconselhada pela colega a escrever alguma peça cinematográfica mais intimista, que pudesse ser rodada com menos recursos e com mais liberdade, o que acabou levando as duas a trabalharem juntas na estruturação do roteiro de “Cinco Graças”.  O filme acabou sendo multipremiado, com destaque em Cannes no César e obtendo o reconhecimento da Academia.

Observação importante: “Kings” está em processo de filmagem... Vem coisa boa por aí!

"Mustang" (2015) de Deniz Gamze Ergüven - CG Cinéma [fr]

5º. LUGAR: “CAROL”

(Carol, Reino Unido | Estados Unidos | Austrália, 2015) - de Todd Haynes

Data da Estreia: 14 de janeiro de 2016

Quando o romance “O Preço do Sal” foi lançado em 1952, um artigo do popular The New York Times o classicava como “um relacionamento moderno entre duas mulheres”, justamente por não conseguir encontrar palavras melhores para discutir um tema que sequer era abordado pública e particularmente pela sociedade estadunidense na época. Autora do argumento, a escritora texana Patricia Highsmith chegou a utilizar um pseudônimo para conseguir publicar o livro e evitar a dura repreensão da crítica por ser mulher e por abordar a homossexualidade de uma maneira tão transparecida. Com o título de “Carol”, a obra teve seu texto adaptado para o rádio, para o teatro e, recentementnte, para os cinemas, em um notável trabalho conduzido pelo diretor Todd Haynes.

Ambientada na Nova York do início dos anos 50, a trama acompanha a trajetória de duas mulheres de origens bastante diferentes que casualmente se encontram e passam a a nutrir, uma pela outra, os sentimentos e desejos mais profundos. Sonhando com uma vida melhor, Therese Belivet (Rooney Mara) trabalha em uma loja de departamento em Manhattan durante o período do Natal. Certo dia, a jovem conhece Carol Aird (Cate Blanchett), uma mulher madura e sedutora que se encontra presa em um casamento fracassado. Já neste primeiro encontro, as duas acabam estabelcendo uma sintonia fabulosa, provocada pelo instintivo prazer de uma atração imediata.

Inevitavelmente, o envolvimento de Carol com Therese acaba vindo à tona; e como as normas convencionais daquele tempo contestavam qualquer tipo de relação extraconjugal de forma condenatória, as duas passaram a sofrer uma rejeição dobrada por conta dos recentes acontecimentos. O marido de Carol, Harge Aird (Kyle Chandler), passa a afrontá-la com discursos vazios sobre amor e cumplicidade e ainda contesta a sua capacidade e competência ao desempenhar o papel de mãe quando descobre os estreitos laços de amizade que a esposa também havia mantido com Abby Gerhard (Sarah Paulson), sua melhor amiga. Repleto de outras camadas afetivas e sensoriais, o longa se desenvolve sobre um plano reflexivo, contido e extremamente doloroso, mas sem dissipar a atmosfera carregada por uma tensão sexual latente cercada de mistérios, encantos e decepções.

Triste é percerber que, décadas depois, o mundo continua se comportando de maneira semelhantemente grosseira e intolerante. Assim como na ponta do lápis de Patricia Highsmith, o discurso do filme não pretende apenas se conservar como um recado espontâneo para a nossa geração, mas sim se transformar em um instrumento capaz de reverberar e renovar alguns de nossos conceitos a partir de um ideal de felicidade estúpido defendido pelos nossos antepassados. “Carol” é, sem dúvida, uma das demonstrações mais puras de que o amor é um fenômeno que sempre fará parte da condição de existência humana, independentemente da sexualidade.

"Carol" (2015) de Todd Haynes - Infilm [gb] | Number 9 Films [gb] | Killer Films [us]

4º. LUGAR: “O LOBO DO DESERTO”

(Theeb, Emirados Árabes Unidos | Catar | Jordânia | Reino Unido, 2014) - de Naji Abu Nowar

Data da Estreia: 18 de fevereiro de 2016

Candidato ao Oscar de melhor filme estrangeiro na edição deste ano, “O Lobo do Deserto” é uma obra cinematográfica poderosa, pois propõe uma das discussões mais urgentes sobre os atuais rumos da humanidade e é reflexo do florescimento de uma nova era de produções independentes que contemplam as regiões mais desfavorecidas do planeta. Diretamente confrontados pelo nosso indiluível caráter, observamos como determinadas decisões podem mudar a vida das pessoas de maneira drástica e efêmera. Além disso, descobrimos que a fraternidade, a solidariedade e o respeito à dignidade de cada ser humano representam um conjunto de virtudes que todos nós deveríamos comungar.

Em 1916, o mundo começava a sofrer algumas das consequências mais danosas de sua Primeira Grande Guerra. Em meio a eclosão dos primeiros conflitos armados da Revolta Árabe, Theeb (Jacir Eid Al-Hwietat) participa de uma arriscada peregrinação junto a uma tribo de beduínos que atravessa o deserto da Província de Hejaz, localizada no Império Otomano. Acostumado a um cotidiano rústico, o menino passa boa parte do tempo brincando com seu irmão mais velho, Hussein (Hussein Salameh Al-Sweilhiyeen). Entretanto, o destino desse grupo de viajantes toma outros rumos com a chegada de Edward (Jack Fox), um oficial do exército britânico, e Marji (Marji Audeh), o seu guia.

Perdido pelo território, o estrangeiro pede para que Hussein o acompanhe em uma missão secreta. Pela primeira vez a civilização ocidental penetra em um antro até então intocado e, de forma acidental, Theeb acaba se transformando no protagonista dessa história, tendo ainda que enfrentar a crueldade e a insegurança na sua precoce transição para a vida aulta. A sua trajetória é cativante e nunca apela para o sensacionalismo, justamente pelo fato de seu drama particular ser intenso e verdadeiro. Jamais esperamos que garoto trilhe uma jornada escaldante e solitária em busca constante pela sobrevivência; nostálgico, o sol se põe e mais um dia turbulento termina.

As ambientações são um espetáculo visual à parte e o ritmo lento e silencioso da narrativa são um convite para apreciar as belezas do deserto; assim como os enquadramentos focados nas expressões sofridas dos personagens, que nos aproximam ainda mais da profunda sutileza de suas interações. Simples tal qual o popular cinema iraniano – que alcançou reconhecimento internacional a partir da década de 90 – alguns longas lançados pela Jordânia vêm ganhando a atenção do público por marcarem presennça em alguns dos festivais mais importantes do mundo – principalmente nos últimos cinco anos – com amplo destaque para “O Casamento de May” (2013) de Cherien Dabis; e “Curse of Mesopotamia” (2015) de Lauand Omar. Futuramente, “O Lobo do Deserto” poderá se configurar como um dos principais trabalhos que colocaram o padrão das produções do Oriente Médio em um patamar ainda mais elevado.

"Theeb" (2014) - de Naji Abu Nowar - Bayt Al Shawareb [jo] | Noor Pictures [gb]

3º. LUGAR: “CREED: NASCIDO PARA LUTAR”

(Creed, Estados Unidos, 2015) - de Ryan Coogler

Data da Estreia: 14 de janeiro de 2016

Carregado de nostalgia, “Creed: Nascido para Lutar” alumia e revigora uma das franquias de maior sucesso da história do cinema através de uma crônica moderna que acompanha a jornada de superação de Adonis Johnson (Michael B. Jordan). O rapaz é fruto de um relacionamento extraconjugal do brilhante pugilista Apollo Creed, que morreu antes mesmo de conhecer o filho. Com a paixão pelo boxe impressa em seu DNA, ele tenta construir uma carreira vitoriosa nos ringues ao mesmo tempo em que procura fugir da sombra do pai.

Em busca de identidade, o jovem lutador segue para a Filadélfia afim de encontrar o grande amigo e maior rival de seu pai, o lendário Rocky Balboa (Sylvester Stallone). Envelhecido e avesso a modernidades, o ex-campeão mundial dos pesos-pesados se mostra reticente diante da proposta inicial de Adonis, que tenta convencê-lo a trabalhar como seu mentor. A partir do momento em que Rocky aceita treinar o garoto, passamos a testemunhar o fortalecimento de um fraterno vínculo de amizade entre os dois. Parte dessa cumplicidade é dividida com Bianca (Tessa Thompson), uma talentosa cantora de R&B que engata um relacionamento com Adonis.

Corajoso, o diretor Ryan Coogler – que já havia estreado de forma proeminente em longa-metragens com o elogiado “Fruitvale Station: A Última Parada” (2013) – resolveu transformar em roteiro uma antinga história que havia escrito, imaginando quais seriam os próximos passos de Rocky Balboa nos anos que seguiriam à sua aposentadoria. A ideia de colocar um personagem tão representativo no plano secundário dessa nova narrativa parecia ser uma aposta bastante arriscada. Consequentemente, convencer Sylvester Stallone a participar do projeto também não seria uma das tarefas mais fáceis.

O astro não só topou como também se envolveu de maneira apaixonada com a produção do filme. Definitivamente, esta seria a grande oportunidade de Stallone mostrar aos críticos a sua inquestionável versatilidade, se entregando a uma interpretação profundamente densa. Inclusive, grande parte da carga emocional da trama está centrada nas aflições e nas incertezas que tomam conta da vida particular de Balboa. A repetição do icônico papel rendeu a Sly o Globo de Ouro de Melhor Ator Coadjuvante; mas o fato de não ter o seu talento reconhecido pela Academia representou, certamente, uma das maiores frustrações deste ano.

“Creed: Nascido para Lutar” não pode ser classificado ou sequer considerado uma peça de comparação, mas não restam dúvidas de que ele devolveu a emoção e a qualidade que a série foi perdendo ao longo de suas continuações e que, fortuitamente, havia ganhado um pequeno fôlego com “Rocky Balboa” (2006), dirigida pelo próprio Stallone. A obra é bem superior a esse fato, pois construiu uma carreira independente e tem potencial para se transformar em um dos maiores clássicos da contemporaneidade.

"Creed" (2015) de Ryan Coogler
Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) [us] | Warner Bros. [us] | New Line Cinema [us] | Chartoff-Winkler Productions [us]

2º. LUGAR: “A CHEGADA”

(Arrival, Estados Unidos, 2016) - de Denis Villeneuve

Data da Estreia: 24 de novembro de 2016

Produção cinematográfica mais elogiada e recomendada deste final de ano, “A Chegada” trata com muita delicadeza e sensibilidade o que os demais filmes que seguem a linha habitual do gênero procuram abordar de maneira megalomaníaca. Adaptado do sofisticado conto de ficção científica “Story of Your Life”, do escritor Ted Chiang, o contorno da trama é concebido com notável vigor e explora uma série de temas interessantes, como o aguardado contato com outras formas de vida inteligente; como as incertas consequências estabelecidas em vínculos de casualidade podem afetar o nosso destino; e como o relativismo linguístico influi na construção cultural de universos intelectuais distintos.

Quando doze OVNIs gigantescos aparecem misteriosamente em vários cantos da Terra, uma equipe composta pelos cientistas mais respeitados dos Estados Unidos é imediatamente convocada pelo governo e pelos militares com o objetivo de investigar e desvendar as possíveis motivações deste primeiro encontro de espécies extraterrestres com a humanidade. Enquanto o mundo enfrenta uma de suas mais graves crises, oscilando entre vários desacordos diplomáticos e se encaminhando para um conflito global sem precedentes, o grupo liderado de forma protocolar pelo Coronel Weber (Forest Whitaker) se estabelece próximo a área onde uma dessas estranhas “naves espaciais” se encontra estacionada.

Entre os estudiosos recrutados estão Louise Banks (Amy Adams), uma professora universitária especializada em linguagem; e Ian Donnelly (Jeremy Renner), um físico aprumado e muito seguro de si por estar acostumado às explicações lógicas fornecidas pelos números. Correndo contra o tempo, eles tentam cumprir a difícil tarefa de interpretar e decodificar os incomuns sinais transmitidos pelos alienígenas que comandam esta ação. Apelidadas cientificamente de Heptapods (e carinhosamente de Abbott e Costello), as duas criaturas possuem uma forma bastante peculiar de se comunicar, elaborando uma estrutura de escrita baseada em símbolos semânticos complexos. Ao passo em que consegue decifrar alguns desses códigos, demosntrando uma linha de raciocínio possível para estabelecer uma interção com estes seres, Louise é envolvida por um dilema que poderá ameaçar a sua vida e, possivelmente, colocar todo o planeta em risco.

Certeira na crítica à instabilidade comportamental da sociedade e sua pífia capacidade de aproximação através do diálogo, a história ainda é entrecortada pelo relacionamento afetivo de Louise com a filha. Com recordações dolorosas ou com memórias que precisam ser esquecidas, observamos os pontos que sustentam um ardiloso suspense e provocam ondas de ansiedade no espectador. Essa característica narrativa é muito comum nas obras do diretor canadense Denis Villeneuve que, sempre acostumado com a construção de elipses, conduz aqui um trabalho sólido apoiado por um roteiro hábil e sem espaço para devaneios. Entretanto, é a interpretação exuberante de Amy Adams que carrega toda a emoção entranhada no longa, imprimindo ritmo e potência necessária para alavancar seu sucesso.

"Arrival" (2016) de Denis Villeneuve
21 Laps Entertainment [us] | FilmNation Entertainment [us] | Lava Bear Films [us] | Xenolinguistics [us]

1º. LUGAR: “O QUARTO DE JACK”

(Room, Irlanda | Canadá | Reino Unido | Estados Unidos, 2015) - de Lenny Abrahamson

Data da Estreia: 18 de fevereiro de 2016

O ano de 2016 começou repleto de promessas, alvoroçado pelas estreias de dramas estritamente densos, megaproduções milionárias e expansões das mais famosas franquias cinematográficas; mas nenhuma delas nos pegou com tanta surpresa e provocou tamanha comoção quanto o lançamento de “O Quarto de Jack”. O venturoso trabalho de Lenny Abrahamson carrega na simplicidade o seu maior trunfo, adaptando com maestria o romance “Room”, da escritora irlandesa Emma Donoghue. Apesar de contar com uma sinopse entreguista, é importante destacar que a trama nunca gira em torno das surpresas e sequer é marcada por grandes reviravoltas; em nenhum momento revelamos nada além daquilo que fora veiculado nos trailers ou em outros materiais de divulgação do longa.

Inspirado em casos doentios de sequestros, cárceres privados e escravização sexual, “O Quarto de Jack” não abusa da emoção ou do incômodo para tratar de um assunto tão repulsivo, severo e silenciosamente monstruoso. Sem dúvidas, a maior virtude alcançada na construção da narrativa fica marcada pela singeleza das ações, amplamente reforçada pela trajetória metamórfica de suas personagens. Essa predicação se torna ainda mais clara quando observamos um tema absolutamente complicado abandonar as possibilidades de se prender a sentimentalismos baratos, passando a tomar contornos interessantes ao ser conduzido através do prodigioso ponto de vista de uma criatura inocente, Jack (Jacob Tremblay), um garotinho de cinco anos de idade.

Entregue à imaginação, Jack tem vivido muito feliz dentro dos limites idealistas do seu universo particular, confinado em um pequeno galpão na companhia da mãe, Joy (Brie Larson). Ambos são mantidos reféns por um homem misterioso, conhecido apenas como Velho Nick (Sean Bridgers). O menino nasceu neste quarto e, fora as visitas periódicas desse sequestrador, seu único contato com o ambiente exterior se dá pela claraboia do abrigo e pelas imagens da televisão, que registram um mundo fantástico habitado por árvores, animais e outras pessoas. Tomada pelo amor e pela angústia, Joy elabora um plano arriscado para escapar do cativeiro; façanha que sublima a sua redenção e legitima as proezas do papel de uma mãe protetora.

A partir desse ponto, acompanhamos as descobertas e o misto de sensações que Jack experimenta ao mergulhar, de maneira profundamente inesquecível, em uma realidade da qual ele nunca sonhou que pudesse existir. Factualmente, considerações e discussões sobre o filme perder o fôlego quando a porta do quarto se abre são pertinentes, mas não podemos menosprezar a valorosa e singular direção de Abrahamson, que nos mostra o quanto essa vida real pode ser dilacerante. A atuação intrépida e magnética de Brie Larson foi agraciada com um Oscar na categoria de melhor atriz; e a simpatia de Jacob Tremblay transcende barreiras de fofura, fazendo do ator mirim a personalidade mais apaixonante e carismática do ano.

"Room" (2015) de Lenny Abrahamson - Element Pictures [ie] | Film 4 [gb] | FilmNation Entertainment [us]
Irish Film Board [ie] | No Trace Camping [us] | Ontario Media Devlopment Corporation (OMDC) [ca] | Telefilm Canada [ca]

Entendemos também que uma lista com apenas dez filmes acaba ficando muito pequeno para traduzir a ampla produção cinematográfica internacional. Dessa forma, resolvemos incluir, no final do artigo, pequenas listas que citam somente o título, o ano de produção e o diretor de filmes que se encaixam em algumas categorias que julgamos importantes. Confira:

Também mereceram destaque este ano: “O Cavalo de Turim” (2011) de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky; “Ele Está de Volta” (2015) de David Wnendt; “Elle” (2016) de Paul Verhoeven; “A Ovelha Negra” (2015) de Grímur Hákonarson; “O Regresso” (2015) de Alejandro G. Iñárritu; e “Spotlight: Segredos Revelados” (2015) de Tom McCarthy.

Não vimos e nem veremos: “Ben-Hur” (2016) de Timur Bekmambetov.

Ainda faltam ser conferidos: “Anomalisa” (2015) de Duke Johnson e Charlie Kaufman; “Capitão Fantástico” (2016) de Matt Ross; “Jovens, Loucos e mais Rebeldes” (2016) de Richard Linklater; “Juventude” (2015) de Paolo Sorrentino; “Sieranevada” (2016) de Cristi Puiu; e “Sully: O Herói do Rio Hudson” (2016) de Clint Eastwood.

Podem obter grande destaque em 2017: “Blade Runner 2049” (2017) de Denis Villeneuve; “La La Land: Cantando Estações" (2016) de Damien Chazelle; “Manchester à Beira-Mar” (2016) de Kenneth Lonergan; “Moonlight” (2016) de Barry Jenkins; “Silêncio” (2016) de Martin Scorsese; e “Toni Erdmann” (2016) de Maren Ade.

Maior expectativa para 2017: “Star Wars Episódio VIII” (2017) de Rian Johnson.

(*) Lembrando que críticas, apontamentos de injustiças ou esquecimentos podem ser expressos nos comentários... ;-)

(**) Também não descartaremos os elogios! :-D

Confira também as listas com “Os Dez Melhores Filmes” de cada ano elaboradas pelo Rotina Cinemeira em artigos anteriores:


ENTÃO É ISSO! QUE O ANO DE 2017 SEJA TÃO ESPECIAL QUANTO FOI O DE 2016: UM ANO DE EXCELENTES FILMES, INESQUECÍVEIS PARA TODOS NÓS!

VIVA O CINEMA!


quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Feito no Brasil | Os Dez Melhores Filmes Nacionais de 2016

Durante essa semana, 2016 entra em sua reta final. Esse é o período no qual começam a pipocar pelas redes sociais – e pela rede em geral – vários artigos e listas que elegem os melhores filmes do ano. Pegando carona nessa tradição, chegou o momento de também destacarmos aqueles trabalhos que mais nos chamaram a atenção ao longo da temporada, revelando aos leitores quais foram os nossos favoritos e quais foram aqueles que mais nos encantaram; títulos que já podem até ser colocados em listas pessoais de melhores de todos os tempos (nós mesmos, já incluímos alguns na nossa). Informamos que a nossa relação anual ainda está em processo de elaboração e faremos todo o possível para divulga-la até sexta-feira. Contando com aquelas famosas “injustiças pontuais”, tentaremos não decepcionar ninguém ao apresentar Os Dez Melhores Filmes do Ano, segundo a nossa visão.

Enquanto isso não acontece, o Rotina Cinemeira volta com mais uma proposta diferente, que já se configura como uma das marcas mais emblemáticas desse espaço e comumente não chegam a ser executadas por outros blogs e sites de entretenimento. Destacaremos e indicaremos aqui as dez melhores produções nacionais de 2016, longas espetaculares e inventivos que colocam o Brasil entre os grandes mercados cinematográficos do planeta.

Quem nos segue desde o início sabe que sempre procuramos reservar um grande espaço para as produções nacionais, promovendo muitas das fantásticas obras que foram lançados recentemente e que, por algum motivo, não obtiveram o reconhecimento que merecem. Nossa preocupação é manifesta e legítima, afinal muitos desses filmes estrearam em pouquíssimas salas, sendo basicamente reduzidas ao circuito cultural Rio-SP. No nosso caso, a maioria das sessões que acompanhamos ficaram restritas à festivais e mostras especiais realizadas ao longo dos últimos anos em Belo Horizonte. Dessa forma, fica ainda mais evidente a importância de divulgarmos uma lista como esta, pois acreditamos que esses valorosos projetos merecem o mesmo espaço – ou até mesmo um destaque maior – do que as demais produções rodadas ao redor do mundo. Valorizar o Cinema Brasileiro é FUNDAMENTAL!

Este ano ainda conta com uma peculiaridade: como todos os dez filmes selecionados são ficções, resolvemos indicar três fabulosos documentários lançados durante esses últimos doze meses: “Cinema Novo” (2016) de Eryk Rocha, um ensaio poético que se aprofunda pelo movimento de cinema mais relevantente do país; “A Loucura entre Nós” (2016) de Fernanda Fontes Vareille, que questiona os limites de nossa própria sanidade ao registrar o cotidiano angustiante de um hospital psiquiátrico;  e “Martírio” (2016) de Vincent Carelli (o filme que mais nos impressionou nos últimos tempos), um trabalho poderoso que causa revolta e indignação ao escancarar o lacerante e impiedoso tratamento que o governo destina às comunidades indíginas. Devido a extensa duração, este último dificilmente estreará no circuto comercial, mas as discussões propostas por ele são mais do que urgentes e merece a atenção de cada brasileiro. É importante corrermos atrás de obras impactantes e significativas como essas, pois são elas que destacam a importância do cinema como uma das principais ferramentas de construção da sociedade.

Lembramos que o critério escolhido para estabelecer os títulos que integram a lista final se restringe apenas aos filmes que estrearam em 2016 nas salas de cinema do país através do circuito comercial, ou aqueles lançados diretamente em Home Video ou VOD.

A relação não é longa, mas os comentários a respeito de cada um dos filmes eleitos acabaram se estendendo um pouco mais do que o esperado. Então, sem mais protelações, vamos à Lista com Os Dez Melhores Filmes Nacionais de 2016 (em ordem decrescente):

10º. LUGAR: “A VIZINHANÇA DO TIGRE”

(A Vizinhança do Tigre, Brasil, 2016) - de Affonso Uchoa

Data da Estreia: 18 de fevereiro de 2016

Categórico e poderoso, o cinema de resistência sempre trabalha em prol da construção de uma identidade social cada vez mais digna, combatendo com precisão qualquer tipo de hostilidade, preconceito ou repressão vindas – geralmente – daqueles que deveriam ser os principais responsáveis pelo zelo e pelo tratamento igualitário de todas as comunidades. Exemplo indômito e pulsante deste tipo de registro, “A Vizinhança do Tigre” caminha sobre uma linha tênue e mordaz que suplanta o ideário da desordem política, dando voz ativa para a periferia. Pautado por uma narrativa extremamente original, que segue o percurso da vida real pontualmente marcado por momentos de pura inventividade, o filme é sustentado pela proposta de abolir as fronteiras entre o documentário e a ficção, trazendo para o público uma das mais intensas reflexões feitas pelo cinema nacional nos últimos anos.

Angustiada, porém corajosa, a câmera conduzida pelo diretor mineiro Affonso Uchoa acompanha a vida de jovens moradores do bairro Nacional, localizado na cercania suburbana do município de Contagem. Durante todo o tempo, observamos as marcas que a vida acaba imprimindo nos destinos de Neguinho (Wenderson dos Santos), Juninho (Aristides de Souza), Menor (Maurício Chagas), Adílson (Adílson Cordeiro) e Eldo (Eldo Rodrigues). As intimidades de cada um dos adolescentes são nitidamente marcadas pela revolta e pela violência, mas sempre deixam uma porta aberta para a esperança. Em face da diversão corriqueira e divididos por obrigações cominadas pela iminência da vida adulta, cada um deles deve encontrar as melhores saídas para superarem todas as dificuldades “domando o tigre que carregam dentro de suas veias”. O impacto da metáfora é, inclusive, o que dá a tônica desse já importante clássico contemporâneo.

“A Vizinhança do Tigre” é o reflexo de um trabalho consciente e honesto que evidencia a extraordinária colaboração entre um elenco formidável e uma equipe de produção extremamente competente. Em muitos momentos, não sabemos aonde termina o trabalho de Uchoa e começa o dos garotos; qualidade bastante positiva. Grande exemplo de criação coletiva, o longa ressoa como uma obra sufocante que clama por urgência, mesmo que todos demorem algum tempo para digerir e decifrar várias das suas mensagens.

"A Vizinhança do Tigre" (2016) de Affonso Uchoa - Katásia Filmes [br]

9º. LUGAR: “BOI NEON”

(Boi Neon, Brasil | Uruguai | Holanda, 2015) - de Gabriel Mascaro

Data da Estreia: 14 de janeiro de 2016

Filme que certamente alimentava uma das maiores expectativas para 2016, muito por conta de suas múltiplas premiações em festivais internacionais, “Boi Neon” estreou nos cinemas logo nas primeiras semanas do ano e não decepcionou. Vencedor do prêmio especial do Júri na “Mostra Horizontes” em Veneza, o segundo longa-metragem de ficção escrito e dirigido pelo pernambucano Gabriel Mascaro já se configura como um dos trabalhos mais relevantes da década, tornando ainda mais poderoso o cardápio cultural da recente filmografia brasileira.

Conduzida por um argumento que valoriza longas tomadas de beleza contemplativa, repletas de nuances que emanam desejos e transpiram sexualidade, a trama pega carona pelas estradas e pelos sonhos empoeirados de Iremar (Juliano Cazarré), jovem que faz parte de um grupo de vaqueiros que viajam pelo nordeste brasileiro na carroceria de um caminhão e trabalham nos bastidores das tradicionais vaquejadas. O grupo é responsável por transportar os bois para os eventos, bem como por preparar cada um dos animais antes que sejam soltos nas arenas de rodeio onde são realizados os espetáculos.

Competente, determinada e ousada, Galega (Maeve Jinkings) é a motorista e principal responsável pelos cuidados com o caminhão, que também funciona como casa improvisada para ela, para seus colegas de trabalho e para sua filha, Cacá (Alyne Santana). Construindo fortes laços de amizade com todos, sempre dispostos em uma intimidade acolhedora e semelhantemente familiar, a garota insiste em dividir a boleia com a mãe, mesmo sendo constantemente cobrada por Galega para ir morar na cidade com os avós e construir uma infância mais venturosa.

Road movie poético e fortuitamente silencioso, “Boi Neon” nada mais é do que a trajetória errante das suas personagens por uma vida reiteradamente acomodada em um cotidiano sertanejo protocolar, mas que desmantelam qualquer tipo de convenção e nunca se distanciam de esperançadas quimeras. Iremar, por exemplo, enquanto permanece deitado em sua rede na traseira do caminhão, divaga entre rabiscos, lantejoulas e costuras de tecidos, imaginando um dia largar a sua amargurada condição de peão e se aventurar no mundo da moda, seguindo carreira de estilista.

"Boi Neon" (2015) de Gabriel Mascaro
Desvia Filmes [br] | Malbicho Cine [uy] | Viking Film [nl] | Canal Brasil [br] | Programa Ibermedia [es]

8º. LUGAR: “A FRENTE FRIA QUE A CHUVA TRAZ”

(A Frente Fria que a Chuva Traz, Brasil, 2015) - de Neville de Almeida

Data da Estreia: 28 de abril de 2016

Com visual atraente e título instigante, “A Frente Fria que a Chuva Traz” marca o sublime retorno de Neville de Almeida ao comando de uma câmera após permanecer quase vinte anos afastado de projetos cinematográficos. Desde “Navalha na Carne” (1997) não víamos a sua admirável inventividade transbordar pelas telas, mas agora temos a oportunidade de conferir o novo trabalho do polêmico diretor que, mais uma vez, aparece para incomodar e subverter o espectador, justamente por fugir do comodismo das entrelinhas.

Baseada na peça homônima do ator e dramaturgo Mário Bortolotto, a trama aborda o cotidiano de um grupo de jovens burgueses que aluga uma laje no Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, com o intuito de promover luxuosas festas embaladas pelo funk, apimentadas por brincadeiras libidinosas e movidas pelo consumo desenfreado de drogas lícitas e ilícitas. O filme nunca chega a ser moldado por metáforas e, de forma voraz, acaba registrando com crueza o vazio de uma geração deturpada pelo dinheiro, acostumada a ser regida por comportamentos artificiais e completamente dependente da famigerada masturbação de ego.

Não por acaso, é a descompensada Amsterdã (Bruna Linzmeyer) que se mostra a mais lúcida do grupo. O papel da desafortunada e ignóbil jovem, que se submete a qualquer tipo de humilhação para manter os vícios, se encaixa de forma impressionante ao explosivo ato final do longa, que arremata um discurso carregado de fúria e sordidez, apontando um dedo repleto de impugnações para a paradoxal realidade carioca, que já foi criticada anteriormente pelo próprio Neville em “Rio Babilônia” (1982). Vale lembrar que as escolhas estéticas que privilegiaram a superficialidade e a vulgaridade das ações ressaltam que o objetivo proposto pela narrativa foi plenamente alcançado.

Inflamado por um discurso pujante e despido de qualquer tipo de sociologia barata, Neville traz para a contemporaneidade contornos particularmente caóticos que algumas obras recentes precisam absorver. Abdicando das possibilidades de fazer qualquer tipo de concessão, ele ainda nos mostra que continua em absoluta forma, regressando ao admirável estilo marginal de se fazer cinema. De forma impactante, “ A Frente Fria que a Chuva Traz” acaba revelando tudo o que o cineasta considera mais escroto e repugnante na sociedade.

"A Frente Fria que a Chuva Traz" (2015) de Neville de Almeida - República Pureza Filmes [br]

7º. LUGAR: “CAMPO GRANDE”

(Campo Grande, Brasil | França, 2015) - de Sandra Kogut

Data da Estreia: 2 de junho de 2016

Certa manhã, Ygor, de oito anos, e Rayane, de seis, são deixados pela mãe em frente à portaria de um prédio de classe média alta de Ipanema. Aparentemente, o eventual imprevisto ocorre sem nenhuma explicação lógica, podendo ser decifrado apenas por um pedaço de papel encontrado com as crianças no qual estão anotados o nome e o endereço de Regina (Carla Ribas), dona de um dos apartamentos. Em nenhum momento, os irmãos deixam de acreditar que a mãe voltará para buscá-los, mas a angústia toma conta daqueles que, indiretamente, ficaram responsáveis pelos dois. Será que ela realmente vai regressar?

Uma das produções nacionais que mais despertaram interesse do público no último ano, “Campo Grande” narra com sensibilidade e rara inspiração um drama genuinamente urbano, colocando no centro das discussões temas como o abandono de menores e a conturbada relação entre pessoas de níveis sociais diferentes. O mergulho emocional do espectador pelo universo do filme é diretamente conectado pela inesperada e, por vezes, surreal presença das crianças no mundo de Regina, situação atípica que acaba transformando a sua vida profundamente.

Não há um porto seguro e nem um momento de respiro dos personagens. À medida em que uma série de perguntas não são respondidas, a busca incessante pela mãe das crianças se torna o único ponto de orientação para Regina, que toma a iniciativa de levar Ygor de volta para a casa, no bairro de Campo Grande. A partir deste momento, o choque cultural é reforçado pela transição entre os ambientes, momento crucial em que a cidade do Rio de Janeiro, com todas as suas contradições, também se transforma em uma personagem importante do filme.

Fica clara a impressionante capacidade que a diretora Sandra Kogut possui ao lidar com os seus pequenos protagonistas, capturando com precisão toda emoção transparecida pela inocência de uma criança; um benevolente jogo de cintura já observado em “Mutum” (2007), seu trabalho anterior. Ygor Manoel e Rayane do Amaral fazem as suas estreias como atores mirins e estão ótimos em cena, e a ideia de utilizar os seus próprios nomes para os personagens foi muito acertada, pois contribuiu para dar mais naturalidade às ações deste cativante longa-metragem.

"Campo Grande" (2015) de Sandra Kogut - Gloria Films [fr] | Tambellini Filmes [br]

6º. LUGAR: “BRASIL S/A”

(Brasil S/A, Brasil, 2014) - de Marcelo Pedroso

Data da Estreia: 11 de agosto de 2016

A ordem e o progresso soam paradoxais para nós brasileiros quando, costumeiramente, nos enxergamos ou nos posicionamos na periferia do mundo. Com humor ácido e silencioso que, por vezes, remete aos clássicos “Tempos Modernos” (1936) de Charles Chaplin ou “Playtime - Tempo de Diversão” (1967) de Jacques Tati, “Brasil S/A” é fruto de uma autorreflexão sobre o momento atual do país, evidenciando ainda a subalternidade e as contradições de uma modernização acelerada e descomedida. Ao privatizar a nossa nação já no título do filme, o diretor Marcelo Pedroso mostra como o Brasil vem passando por uma série de situações entorpecidas no campo desenvolvimentista ao longo dos últimos anos. As experiências acabam sendo resultado desse avanço desenfreado e redefinem as nossas estruturas sociais mais arcaicas.

Em mais de 500 anos de história, o Brasil teve no cultivo da cana-de-açúcar uma de suas principais forças econômicas. Edilson da Silva passou a maior parte de sua vida trabalhando como cortador de cana e, a partir do momento em que as máquinas surgem na sua vida, ele deixa o canavial rumo a uma missão interplanetária, explorando o espaço pela primeira vez – “Um pequeno passo para Edilson, um salto gigantesco para o Brasil”. Os ecos insólitos das imagens e dos sons alumiam o contrassenso da vida moderna e revelam a eterna vocação que o país possui de ser a predestinada nação do futuro. Em “Brasil S/A”, a evolução (ou involução?) sempre vai na contramão dos problemas sociais que já pareciam ser, histórica e naturalmente, determinados.

Vencedor das categorias de melhor roteiro e melhor direção pelo filme no Festival de Brasília em 2014, Marcelo Pedroso é um dos principais nomes do novo cinema pernambucano e possui um importante currículo como documentarista, onde podemos destacar relevantes e inventivos trabalhos como o longa “Pacific” e o média-metragem “Balsa”, ambos de 2009, além do curta “Câmara Escura” (2012).  Sempre abordando temas com forte teor social e político, ele ainda lançou em 2013 o aclamado e provocativo curta de ficção “Em Trânsito”. “Brasil S/A” é o seu primeiro longa ficcional, obra que consolida e determina uma carreira em franca ascensão.

"Brasil S/A" (2014) de Marcelo Pedroso - Símio Filmes [br]

5º. LUGAR: “MATE-ME POR FAVOR”

(Mate-me por Favor, Brasil | Argentina, 2015) - de Anita Rocha da Silveira

Data da Estreia: 15 de setembro de 2016

Longa-metragem de estreia da versátil diretora Anita Rocha da Silveira, “Mate-me por Favor” acompanha, de forma categórica e explosiva, a inquietante jornada emocional de quatro amigas que transitam da adolescência para a vida adulta, ficando marcadas por momentos repletos de anseios, conflitos e indagações. Carregados de estranhezas e complexidades, os dilemas da juventude acabam sendo trazuzidos por um sentimento de urgência, trazendo consigo o angustiante esvaziamento da vida e enxergando na morte a fascinante alternativa para uma sublime e obscura transformação.

Audacioso e sufocante, o filme é mais um belo e original exemplar do ascendente cinema de gênero, composto por uma série produções eficazes que aumentam a nossa capacidade de percepção enquanto espectador, valorizando o supesnse e elocubrando o prazer e o medo. Aqui, a contagiante proposta estilística aplicada à narrativa se mostra extremamente apurada, fazendo com que a trama absorva características particulares, escapando pela tangente de um naturalismo óbvio e forçado. Através de aparentes reviravoltas inverídicas, construídas por fabulações exageradas, somos lançados de volta para uma atmosfera realista, onde todo um universo ambíguo e alegórico pretende se expandir.

Neste cenário, observamos o cotidiano de um grupo de jovens ser cruelmente abalado por uma série de homicídios que passam a provocar uma onda de terror na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro. Algumas mulheres vêm sendo estupradas e assassinadas, tendo seus corpos abandonados em um terreno baldio da região. Obcecadasadas pelos crimes, Bia (Valentina Herszage), Mariana (Mari Oliveira), Michele (Júlia Roliz) e Renata (Dora Freind) tentam, involuntariamente, percorrer as pistas deixadas pelo criminoso, ao mesmo tempo em que experimentam as descobertas e as armadilhas habituais da puberdade.

Aquela curiosidade que, de incício, parecia ser apenas um ingênuo jogo inventigativo, começa a infectar a vida dessas meninas, afastando-as gradualmente de suas rotinas normais. O desenrolar das ações é visto sob o olhar afoito e curioso de Bia que, depois de um arriscado encontro com a morte, fará qualquer coisa para permanecer viva. Ela não teme se aventurar e acaba enfrentando esse pesadelo sozinha, ao passo que suas amigas já declinaram ao recuo. Bia continua sua caminhada mórbida, sem deixar de lado as erupções que modificam o seu corpo.

"Mate-me por Favor" (2015) de Anita Rocha da Silveira - Bananeira Filmes [br] | Fado Filmes [pt] | Rei Cine [ar]

4º. LUGAR: “ELA VOLTA NA QUINTA”

(Ela Volta na Quinta, Brasil, 2015) - de André Novais Oliveira

Data da Estreia: 25 de fevereiro de 2016

“Alguém partiu, alguém ficou...” Entre imagens do cotidiano e situações observadas no cerne do ambiente familiar, “Ela Volta na Quinta” reinventa e remonta cenas dos mais de trinta anos de união entre Maria José e Norberto, lançando luz sobre as suas intimidades e revelando os seus maiores conflitos. Desgastado pelo tempo, o relacionamento do casal que mora em um bairro simples na periferia de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, enfrenta a mais severa de suas crises, se encaminhando para um inevitável e doloroso fim. Energicamente emotivo, o dia a dia passa a ser contornado por sentimentos de mágoa.

Primeiro longa-metragem do cineasta mineiro André Novais Oliveira, “Ela Volta na Quinta” segue uma linha narrativa extremamente humanista, centrada em planos longos e fixos sempre construídos através de diálogos singelos e rotineiros. Desde os seus primeiros curtas, o diretor mantém o costume de se debruçar sobre personagens e dramas da vida real para produzir as suas ficções e, no caso desta, é a sua própria família que dá vida à essas apaixonantes personagens (o que também inclui uma participação do próprio André). Apesar de usarem seus nomes verdadeiros e sustentarem a trama a partir de uma base autobiográfica, nenhuma das situações que envolvem os Novais Oliveira se assume como matéria argumentativa principal.

Entre 2014 e 2015, o filme inciciou a sua carreira pelos festivais de cinema do país, sendo apresentado pela primeira vez na Mostra de Cinema de Tiradentes e obtendo destaque significativo nos Festivais de Cinema de Brasília e do Rio de Janeiro. Neste último, inclusive, “Ela Volta na Quinta” acabou conquistando o prêmio de melhor filme nacional na VII Semana de Realizadores. Já em Brasília, na 47ª edição do Festival, venceu nas categorias de melhor atriz coadjuvante (Elida Silpe) e melhor ator coadjuvante (Renato Novais Oliveira).

Emblemática e poética, a estreia de André Novais Oliveira na direção em longas acaba nos presenteando com uma história leve que transcende as barreiras construídas entre o real e o imaginário, transformando as amenidades e os pequenos sinais de estremecimento de uma relação duradoura em uma grandiosa e tenra crônica sobre o amor.

"Ela Volta na Quinta" (2015) de André Novais Oliveira - Filmes de Plástico [br]

3º. LUGAR: “SINFONIA DA NECRÓPOLE”

(Sinfonia da Necrópole, Brasil, 2014) - de Juliana Rojas

Data da Estreia: 14 de abril de 2016

Todo o arrojo e originalidade presentes no cinema autoral de Juliana Rojas já vinham sendo acompanhados com atenção e absoluto interesse pelo público, desde os trabalhos nascidos da frequente e consagrada parceria com o amigo Marco Dutra. Com um humor extremamente refinado, a diretora desdobra a linguagem cinematográfica de gênero para criar uma atmosfera peculiar que reúne a diversão descompromissada de uma comédia inocente e o suspense astucioso de um belo exemplar do terror. “Sinfonia da Necrópole” ainda apresenta um conjunto de cenas memoráveis que, de maneira louvável, tentam popularizar os filmes musicais no país com uma produção 100% nacional.

Deodato (Eduardo Gomes) trabalha como aprendiz de coveiro em um cemitério da cidade de São Paulo, mas já se encontra com o emprego ameaçado. Amedrontado e inseguro, o rapaz aparenta não estar muito animado com a profissão, preferindo tocar um órgão recostado em um dos cantos da capela a ter que se envolver com os mortos à beira de uma cova. Mesmo sendo incentivado por seu tio, Jaca (Paulo Jordão), Deodato segue incapaz exercer suas funções, chegando a desmaiar vergonhosamente na frente das pessoas durante um enterro e tendo que prestar explicações a Aloízio (Hugo Villavicenzio), chefe e administrador do cemitério.

A rotina do desqualificado coveiro começa a tomar contornos mais amenos quando a prefeitura passa considerar a hipótese de que o cemitério já se encontre próximo de sua superlotação. Diante desse problema, a perspicaz Jacqueline (Luciana Paes), representante do departamento funerário da capital, acaba sendo enviada ao local para iniciar o processo de recadastramento e reacomodação dos túmulos. A paixão instantânea impede que Deodato peça demissão, fazendo com que ele encontre motivação extra para continuar trabalhando no cemitério. Juntos, eles devem acompanhar a exumação de algumas sepulturas, afim de identificar e inventariar aquelas que estejam abandonadas.

Burocrática e dinâmica, Jacqueline não consegue conter a sua empolgação em relação ao serviço; enquanto isso, Deodato começa a vivenciar estranhos acontecimentos que continuam abalando o seu estado psicológico, aumentando a sua desconfiança e fazendo com que ele passe a questionar as espantosas implicações de incomodar “o sono” daqueles que já se foram.

"Sinfonia da Necrópole" (2014) de Juliana Rojas - Avoa Filmes [br] | Filmes do Caixote [br]

2º. LUGAR: “FOME”

(Fome, Brasil, 2015) - de Cristiano Burlan

Data da Estreia: 4 de agosto de 2016

Desenvolvendo – com raro primor e sensibilidade – uma narrativa essencialmente focada no poder das imagens, o cineasta Cristiano Burlan retoma a parceria com o crítico e professor de cinema Jean-Claude Bernardet para se debruçar sobre um severo drama contemporâneo, enristado por amarguradas críticas sociais, que sustenta a malfadada invisibilidade de um velho morador de rua e o acompanha em suas desbaratadas andanças pelo centro de São Paulo, maior metrópole da América Latina.

Assumindo com propriedade as formalidades típicas de um docudrama, as bases provocativas de “Fome” procuram desconstruir as nossas percepções superficiais de mundo, esfacelando todos os nossos preconceitos. O filme se destaca, principalmente, pela coesão do roteiro e pela fluidez das ações, auxiliadas pela maneira suave como a câmera percorre um espaço onde se predomina um turbulento caos, característica de qualquer urbe desvairada. Dotado de uma maturidade artística invejável, Bernardet interpreta esse indivíduo arsico de condição miserável que, a esmo, segue jornadas diárias empurrando um carrinho de supermercado completamente empenado e carregado de quinquilharias e memórias.

Aqui, a ficção embaralha a mente do público, nos fazendo acreditar que o mendigo já pertencia a este ambiente fascinante. Afinal, Jean-Claude demonstra uma relação íntima notável com o espaço urbano, sempre buscando um lugar confortável para dormir, alguma coisa para comer e qualquer água empoçada para se lavar. Aos poucos, vamos conhecendo detalhes da vida deste homem, que já foi um renomado professor universitário e hoje mora nas ruas por opção. Abandonando o passado e assumindo a solidão, ele ainda revela algumas marcas impressas pelo destino, lembranças profundamente dolorosas que nem mesmo o tempo foi capaz de cicatrizar.

Esteticamente, o longa se assume como uma obra majestosa e imponente, retratando a capital paulista de maneira extremamente suntuosa; um deslumbre visual ditado pela beleza arquitetônica da região central da cidade e reforçada pelo preto e branco, em uma das fotografias mais elegantes do ano. Ao mesmo tempo, a singeleza da obra é valorizada pelo intimismo, que reflete de forma ambiciosa e pujante o desejo de se combater os incômodos deflagrados por uma cruel desigualdade.

"Fome" (2015) de Cristiano Burlan - Bela Filmes [br]

1º. LUGAR: “AQUARIUS”

(Aquarius, Brasil | França, 2016) - de Kleber Mendonça Filho

Data da Estreia: 1º. de setembro de 2016

“Marcas do meu tempo...” A emocionante história de Clara (Sônia Braga) causou abalos por onde passou, ficando mundialmente conhecida. Viúva de 65 anos, a crítica de música aposentada resiste como a última moradora do Edifício Aquarius, construção original da década de 40 localizada na orla da Praia de Boa Viagem. Todos os apartamentos vizinhos já foram adiquiridos por uma construtora, que possui planos ambiciosos para o terreno. Ela conserva-se firme frente as investidas do engenheiro Diego (Humberto Carrão), que por algumas vezes perde a cabeça nas fracassadas tentativas de incorporação propostas por sua empresa.

Eleito um dos dez maiores lançamentos internacionais do ano pela renomada Cahiers du Cinéma, “Aquarius” é um poderoso drama social que evoca reflexões sobre as relações de poder, sobre o apego à memória e sobre a altivez desmedida de sua personagem principal. Ainda que enraizada em suas próprias convicções, balizadas pelo orgulho e pelo moderado comodismo de uma tradicional família de classe média alta do Recife, Clara pode ser considerada uma heroína do mundo moderno. Ela encontrou forças para vencer um câncer; dispõe de uma generosidade e teimosia incomuns para resolver certos problemas; e suporta com bravura os atrozes avanços da especulação imobiliária.

Escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho, o filme teve sua primeira exibição mundial em maio, durante o Festival de Cannes, entrando na lista dos longas que concorreriam à Palma de Ouro na ocasião. Evitando se aprofundar no alvoroço causado por conta dos protestos contra o impeachment de Dilma Rousseff no tapete vermelho do festival francês; ou fugindo das ebulições provocadas pela polêmica sobre a sua classificação indicativa e pelo fato do título ter sido preterido na escolha de candidato a representar o país na cerimônia do Oscar em 2017; fica o registro de que Kleber é um dos cineastas mais promissores dessa geração, pois é dono de uma personalidade arrojada e tem voz eloquente para revolucionar a forma de se fazer cinema no Brasil.

Aclamado, “Aquarius” é o clássico contemporâneo mais vibrante e surpreendente da filmografia nacional. Possui uma trilha sonora apaixonante (“Hoje”, de Taiguara, nos arranca lágrimas) e conta com um elenco de apoio formidável, composto por nomes de destaque no atual cenário das produções brasileiras, como Carla Ribas, Maeve Jinkings e Irandhir Santos. Por fim, cabe-nos cumprir a deleitável tarefa de exaltar a beleza de Sônia Braga, que está deslumbrante e nos presenteia com o melhor papel de sua carreira.

"Aquarius" (2016) de Kleber Mendonça Filho - CinemaScópio Produções [br] | Globo Filmes [br] | SBS Productions [fr]

Bem, também entendemos que uma lista com apenas dez filmes é muito pequena frente ao grande número de produções de qualidade e nos faz querer saber um pouco mais sobre o cinema que é feito na nossa própria casa. Dessa forma, resolvemos incluir, no final deste artigo, pequenas listas que citam somente o filme, o ano de produção e o diretor de filmes que se encaixam em algumas categorias que também julgamos importantes. Confira:

Também mereceram destaque este ano: “A Bruta Flor do Querer” (2016) de Dida Andrade e Andradina Azevedo; “Exilados do Vulcão” (2013) de Paula Gaitán; “A Morte de J. P. Cuenca” (2015) de João Paulo Cuenca; “Nise: O Coração da Loucura” (2015) de Roberto Berliner; “Para Minha Amada Morta” (2015) de Aly Muritiba; e “O Signo das Tetas” (2016) de Frederico Machado.

Não vimos e nem veremos: “É Fada!” (2016) de Cris D’Amato.

Ainda faltam ser conferidos: “BR 716” (2016) de Domingos de Oliveira; “Canção da Volta” (2016) de Gustavo Rosa de Moura; “Curumim” (2016) de Marcos Prado; “Mãe só há Uma” (2016) de Anna Muylaert; “Maresia” (2016) de Marcos Guttmann; e “Toro” (2016) de Edu Felistoque.

Podem obter grande destaque em 2017: “Elon não Acredita na Morte” (2016) de Ricardo Alves Jr.; “Era o Hotel Cambridge” (2016) de Eliane Caffé; “O Grande Circo Místico" (2016) de Carlos Diegues; “Malasartes e o Duelo com a Morte” (2016) de Paulo Morelli; “O Rastro” (2016) de J. C. Feyer; “Redemoinho” (2017) de José Luiz Villamarim.

Maior expectativa para 2017: “Bingo: O Rei das Manhãs” (2017) de Daniel Rezende.

(*) Lembrando que críticas, apontamentos de injustiças ou esquecimentos podem ser expressos nos comentários... ;-)

(**) Também não descartaremos os elogios! :-D

Confira também as listas com “Os Dez Melhores Filmes Nacionais” elaboradas pelo Rotina Cinemeira em anos anteriores:


ENTÃO É ISSO! QUE OS BONS VENTOS DE 2017 NOS PRESENTEIEM COM MUITO MAIS FILMES ESPETACULARES COMO ESSES!

VIVA SEMPRE O CINEMA NACIONAL!