Alienada, amoral, conservadora, hipócrita, preconceituosa...
Com mais quantos adjetivos podemos classificar uma
sociedade global que adoece face ao pessimismo cotidiano e aos dilemas
propagados pela essência do nosso individualismo primitivo. O ser humano está se
tornando uma figura cada vez mais perversa e o mundo caminha a passos tortos
rumo a um desamparado destino de angústias e incertezas.
Feitos com precisão pela maioria das peças fílmicas, os
insólitos recortes da humanidade ou nos afastam ou nos aproximam daquilo que temos
de pior para oferecer. Querendo ou não, as nossas atitudes mais genuínas estão
sendo constantemente capturadas pelas câmeras e reveladas através das telas. Essas
afirmações ficam bastante claras quando analisamos o bom número de produções reflexivas
realizadas pelo maior mercado cinematográfico do ocidente e, talvez, o mais
influente do mundo. Seja por meio dos dramas familiares, históricos ou até
mesmo através das comédias extravagantes, o cinema estadunidense sempre acaba funcionando
como um grande espelho cultural e social para boa parte dos habitantes da
Terra, geralmente aqueles com a maior crueza de espírito.
Dando continuidade à retrospectiva especial que o Rotina Cinematográfica vem realizando
ao longo desta semana, apresentaremos mais cinco filmes produzidos no não tão
longínquo ano de 1998 – todos eles rodados nos Estados Unidos. Trabalhos substancialmente
importantes que, mesmo depois de completarem 20 anos de lançamento, continuam
enriquecendo muitas discussões ao redor do mundo, sempre batendo forte em temas
delicados e dando novos significados a polêmicas assustadoramente atuais.
A Outra História
Americana (American History X,
Estados Unidos, 1998)
Direção: Tony Kaye
Moldado pelo
conservantismo e pelos preconceitos do pai, Derek Vinyard (Edward Norton)
conduz um movimento jovem de supremacia branca em sua comunidade, construindo a
sua ideologia através do fascismo e se transformando num líder extremamente
carismático. Após cometer um brutal assassinato, o rapaz passa por uma mudança
filosófica radical durante os três anos em que esteve cumprindo pena. O grande
problema é que Derek deixou para trás uma biografia impetuosa, um legado
sedutor que Danny Vinyard (Edward Furlong) pretende defender e perpetuar,
idolatrando e reverenciando a figura desprezível que o irmão mais velho um dia
construiu.
A eloquência
de um roteiro assombrosamente realista transfere para a tela toda profundidade
de um tema bastante grave e recorrente que influencia, de maneira direta, a
formação de pequenos – porém perigosos – grupos sociais movidos pela
intolerância e pelo ódio. “A Outra
História Americana” explora a fundo as consequências do racismo como parte
da construção de grande parte da sociedade estadunidense, representada por
cidadãos que se apoiam no extremismo e na violência para impor a sua moral. Em
seu primeiro trabalho para o cinema, o diretor Tony Kaye não mediu esforços
para contar essa chocante e reveladora história de um ex-neonazista arrependido
que tenta impedir que seu ente mais querido siga o mesmo caminho que acabou o
levando à prisão.
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"American History X" (1998) de Tony Kaye - New Line Cinema [us] Savoy Pictures [us] | The Turman-Morrissey Company [us] |
Felicidade (Happiness, Estados Unidos, 1998)
Direção: Todd Solondz
A realidade é
astuciosa e pluridimensional, principalmente porque boa parte dos indivíduos
que compõe uma sociedade devidamente inserida neste campo factual possuem
espectros emocionais tão variados que são capazes de provocar as mais distintas
reações nas outras pessoas que os observam – aflição, desgosto, empatia e
equiparação, por exemplo. “Felicidade”
nada mais é do que um profundo estudo dos valores mais tradicionais de qualquer
família moderna de classe média que vivia nos Estados Unidos na época do seu
lançamento. O crescimento vertiginoso do cinema independente pegou carona nos
debates e nos questionamentos acerca da moral dos seres humanos, temática
controversa que vinha sendo amplamente discutida no país no final dos anos 90.
É bem difícil
explanar sobre os acontecimentos do filme, basta dizer que o diretor Todd
Solondz tenta nos retransmitir a antiga mensagem de que a felicidade almejada
por todos nós exista somente no campo das ideias. Com um elenco grande, mas
extremamente afiado, a trama gira em torno de três irmãs que tentam, cada uma
ao seu modo, definir/encontrar esse sentimento de alegria ou de paz que todos
nós insistimos e acreditamos que não possa ser apenas passageiro. Através de um
roteiro brilhante, Solondz aponta o seu dedo crítico para depravados, egoístas,
narcisistas e perdedores, mas sem deixar de recobri-los com amargo e imaculado
véu de clemência perpetuado pelo idealismo do sonho americano.
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"Happiness" (1998) de Todd Solondz - Good Machine [us] | Killer Films [us] |
Buffalo ‘66 (Buffalo ‘66, Estados Unidos | Canadá,
1998)
Direção: Vincent Gallo
Magistralmente
dirigido e estrelado por Vincent Gallo (que ainda assina o argumento e as
músicas do filme), “Buffalo ‘66”
representou mais uma das formidáveis realizações do cinema independente dos
Estados Unidos no final da década de 90. Tratando a amargura, a depressão e o
medo de viver com uma sutileza ímpar, essa crônica familiar desconcertante e
bem-humorada traça uma narrativa cotidiana incomum que nos cativa de imediato,
justamente por contrariar algumas regras básicas da realidade e por utilizar
ironias bastante peculiares. Ao se colocar em um cenário – aparentemente –
autobiográfico, o longa não mede esforços para transmitir toda a desesperança e
loucura de seu personagem principal.
Gallo dá vida
ao perturbado Billy Brown que, depois de ser libertado de um longo período na
prisão, decide fazer uma visita para os pais (Anjelica Huston e Ben Gazzara),
com os quais nunca manteve um bom relacionamento. Para justificar esses vários
anos ausente, Billy diz que se casou e que vive satisfeito trabalhando como
agente secreto do governo, muito embora ele precisasse sequestrar Layla
(Christina Ricci) convencendo-a a fingir ser sua mulher no meio dessa desatinada
jornada de mentiras e reencontros. A garota decide entrar no jogo do seu raptor
ao perceber o quanto os seus pais eram desprezíveis e acaba se apaixonando por
um sujeito que, bem no fundo, apenas buscava ter o mínimo de ternura e atenção.
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"Buffalo '66" (1998) de Vincent Gallo - Cinépix Film Properties (CFP) [ca] | Lions Gate Films [us] | Muse Productions [us] |
O Grande Lebowski (The Big Lebowski, Estados Unidos | Reino
Unido, 1998)
Direção: Joel Coen e
Ethan Coen
Figura
destoante da glamorosa e hipnótica cidade de Los Angeles, Jeff Lebowski (Jeff
Bridges), mais conhecido como “The Dude”, leva a vida como o último dos
hippies. Anda sempre desocupado, entorpecido e maltrapilho, gastando a maior
parte do seu tempo ouvindo trilhas clássicas de rock’n’roll e frequentando
clubes de boliche. O seu letárgico destino começa a mudar quando é atacado por
dois marginais ao ser confundido com um milionário de mesmo nome. Sem querer, Lebowski acaba sendo envolvido em
uma trama ambicionada pelo dinheiro – ou pela falta dele. Junto com o seu
melhor amigo, Walter Sobchak (John Goodman), ele tentará resolver, à sua
maneira, todo o tumulto que fora gerado por esse engano.
“The Dude”
excede todos os limites da representação estereotipada de um cara drogado que
vive imerso em seu mundo de alucinações. É incrível perceber o total
desinteresse que o próprio Lebowski tem em relação a tudo que vai acontecendo
com ele. Entretanto, o brilhantismo de um roteiro escrito a quatro pelos Irmãos
Coen faz com que o estranhamento inicial que o espectador sente em relação ao
personagem principal é logo desconstruído/potencializado, uma vez que ele é só
mais uma das caricaturas bizarras que preenche a paisagem burlesca de uma metrópole
que exala neuroses e vaidades.
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"The Big Lebowski" (1998) de Joel Coen e Ethan Coen - Polygram Filmed Entertainment [us] | Working Title Films [gb] |
O Show de Truman - O
Show da Vida (The Truman Show,
Estados Unidos, 1998)
Direção: Peter Weir
Numa época em
que as redes sociais não tomavam o tempo das pessoas, o diretor australiano
Peter Weir levava para as telas de cinema aquilo que hoje podemos classificar
como o profético conto da quimérica verossimilhança. No plano das ações, Jim
Carey encarna com maestria o corretor de seguros Truman Burbank, um sujeito
tranquilo e bem realizado, plenamente acostumado às trivialidades da pacata
rotina de sua cidade natal, a paradisíaca Ilha de Seaheaven. O que ele não
esperava era ter a sua vida virada de cabeça para baixo ao descobrir que o
mundo em que vivia não passava de uma espécie de reality show criado por um grande estúdio de TV e com câmeras
escondidas por toda parte.
Truman era o
grande astro do programa, tendo a vida monitorada desde a infância. Para
aumentar sua angústia, lhe é revelado que todos os moradores da ilhota não
passam de atores contratados, incluindo Meryl (Laura Linney), sua encantadora
esposa, e Marlon (Noah Emmerich), o seu melhor amigo. A partir desse momento o
conceito de existência é desfigurado, muito embora Christof (Ed Harris), o
diretor da atração, ainda utilize de todos os meios para manter essa peça de
entretenimento no ar. “O Show de Truman -
O Show da Vida” é uma fábula indecorosa sobre a vida real e sobre como o
controle e a manipulação de uma sociedade podem ser feitos através dos meios de
divertimento e informação.
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"The Truman Show" (1998) de Peter Weir - Paramount Pictures [us] | Scott Rudin Productions [us] |
Para conhecer ou relembrar os cinco filmes que foram
apresentados na PARTE I dessa
retrospectiva cinematográfica, basta visitar o artigo clicando no link AQUI. E continuem acompanhando a
nossa revisão relâmpago, que já retornar com a PARTE III na próxima segunda-feira!
Até lá...
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