A onda de choque e a devastação provocada pelo lançamento
de “Little Boy”, a fissão nuclear de
urânio que assolou a cidade de Hiroshima, completou exatos 70 anos hoje. A
assombrosa retaliação estadunidense, motivada e culminada pelos ataques
japoneses à base naval de Pearl Harbor, representa o único momento da história
da humanidade em que armas deste tipo foram utilizadas em guerra e contra alvos
civis. No próximo domingo, ainda será lembrada, de forma memoravelmente penosa,
a destruição de Nagasaki pela bomba de plutônio “Fat Man”. A ofensiva apresentou efeitos agudos: matou entre 150 e
320 mil pessoas instantaneamente e deixou outras centenas de milhares
envenenadas ou com severas sequelas, como queimaduras e lesões (físicas ou
genéticas) irreversíveis.
Década após década, os sentimentos de pavor e angústia
continuam a existir e visitam, de maneira opressiva, as mentes de sobreviventes
e herdeiros de um passado aterrorizante vivido pelo Japão na reta final dos
conflitos da Segunda Guerra Mundial. Deixando de lado as discussões sobre os
propósitos (ir)racionais de uma guerra; ou sobre o fato da “pena” imposta pelos
Estados Unidos aos japoneses ter sido rigorosa demais ou branda demais, vale
lembrar que muitos inocentes viviam em Hiroshima e Nagasaki. A verdade é que o
desejo e as tentativas de soerguimento da nação partiram da vontade coletiva de
um povo com o orgulho profundamente ferido, e as ações de reconstrução de uma
identidade já começaram no momento subsecutivo aos bombardeios.
Os anos que se seguiram após 1945 são gloriosos e
dignificantes para o Japão, pois o país soube lidar muito bem com o revés do
recém-encerrado conflito mundial traduzindo em suas várias formas de expressão
e de arte os efeitos desmanteladores que só uma grande derrota pode provocar. A
partir desse momento, a cultura nipônica começou a dialogar de forma inédita
com o ocidente, transparecendo para o mundo todos os seus tormentos e aflições.
No cinema, por exemplo, diretores consagrados como Akira Kurosawa, Kenji
Mizoguchi, Mikio Naruse e Yasujirô Ozu abordavam, em obras singelas e poéticas,
os dilemas e as questões tradicionais da vida simples de um país em recomposição,
universalizando o problema da dor cotidiana de um povo que clamava pela
harmonia e pela paz.
Entretanto, outros cineastas (como, por exemplo, o
visceral Shôhei Imamura) preferiram manter sempre as feridas abertas, escancarando,
de uma forma virulenta e pulsante, a realidade do tormento japonês através da
flagelação e da violência. Em 1954, Ishirô Honda trouxe para as telas a
paranoica e horripilante ficção científica que imortalizou a lenda da principal
herança radioativa dos ataques nucleares: o monstro Godzilla.
"Gojira" (1954) de Ishirô Honda - Toho Film (Eiga) Co. Ltd. [jp] |
E não entendam “Godzilla”
(1954) como um mero e assustador filme de monstros. O longa-metragem de Honda
traduz os paradoxais efeitos da bomba atômica no imaginário coletivo do povo
japonês, defendendo a ideia de que ela é parte indissociável do carma nipônico que,
marcado pelos amargos arrependimentos do pós-guerra, ainda viverá sob a forma
de um bestial lagarto gigante que continuará destruindo e esmagando as maiores
cidades do país através de ações implacáveis. Emergindo à superfície, atentando
à impotência das principais autoridades do país e gerando o medo entre os
comuns, o aberrante réptil leva o seu rastro mortífero e desbaratado até
Tóquio, precisando ser detido imediatamente.
Diante de seus intermináveis e pavorosos reboots (que só pregaram a destruição e
incentivaram, exclusivamente, o exacerbado consumo de sacos de pipoca), o
simbolizado “Godzilla” de Ishirô Honda
ainda reina como uma genuína obra-prima do terror e da ficção científica.
Embora aparente, o filme não representa uma distorção absurda de uma realidade;
ele nos mostra a verdadeira representação do pavor estupefato que o Japão
sempre terá das bombas e dos ataques nucleares.
Invariavelmente, a temática pós-apocalíptica ainda incorpora,
nesse mesmo imaginário coletivo do povo japonês, situações pregressas da
destruição das bombas atômicas e um ambiente de insegurança que poderíamos vir
a encontrar em um futuro, até aquele momento, impensável e distante. Mesclando o
avanço da alta tecnologia com o baixo nível de vida de uma sociedade
desmoronada, o surgimento do movimento Cyberpunk Japonês também veio se apropriar
dos desastres provocados pela “Little
Boy” em Hiroshima para produzir as suas próprias visões caóticas do mundo.
Uma ambiência combalida e povoada pela incerteza e pela marginalização frente
aos principais “avanços globais”, e ainda cercada pelo medo da vigilância e da
interferência dominadora e sociopata de Grandes Corporações no nosso modo de
viver.
Sucesso absoluto no Japão e no resto do mundo e baseado
em uma história de mangá de Katsuhiro Ôtomo, a animação “Akira” (1988), concebida e dirigida pelo seu próprio criador, nos
transporta para uma Neo-Tóquio destruída e caoticamente reconstruída após os
conflitos da Terceira Guerra Mundial em um (na época) longínquo ano de 2019.
Neste cenário inóspito observamos Kaneda, o líder de uma gangue de motoqueiros
que vê seu amigo Tetsuo ser dominado por uma estranha força sobrenatural,
passando a ser objeto de estudo de um projeto experimental secreto do Governo e
que já se encontra completamente fora de controle. Para salvar Tetsuo, Kaneda
se envolve com grupos anarquistas e passa a lutar contra o Sistema num iminente
processo desencadeador de uma indesejada (mas, necessária) Guerra Civil.
A ideia central de “Akira”
gira em torno das discussões sobre indivíduos que possuem poderes sobre-humanos
(em particular, os de contornos psíquicos) sentidos ou adquiridos na
decorrência de grandes catástrofes como, no caso, foram os ataques nucleares.
As relações de todas as personagens com os cataclísmicos acontecimentos só
refletem a desordem social e política de um país que sucumbiu à desordem (e que
também deu vida ao Godzilla). Tais eventualidades, inclusive, são vistas por
uma outra ótica nos Estados Unidos, a ótica do vencedor. O mesmo incidente que
foi capaz de manter o desconfiado Japão das ficções afogado em uma amargura
degenerada, proporcionou que a cultura pop ianque também produzisse os seus
mitos através das desmesuradas tragédias atômicas, como é o caso do Hulk, do
Demolidor e de alguns dos mutantes da franquia de X-Men. O que procede é a
complexa redação do capítulo em que o “trans-humanismo”
oriental acaba sendo confrontado pelo “super-heroísmo”
do ocidente.
A diluição da fronteira entre o real e o virtual e o
aumento artificial da capacidade física e mental propostas pelo cyberpunk indicam
a completa falta de barreiras morais. Resultado disto é a promoção, em “Akira”, de um discurso social agressivo
e egoísta que, embora não tenha uma profunda base filosófica, ajuda a fornecer
uma visão ampla e crítica sobre a alienação e infantilização da juventude (e de
toda uma sociedade); a ineficiência e a corrupção nos governos de maneira
geral; e a militarização e banalização de um sistema que desagrada cada vez
mais àqueles que lutam pelos compromissos de uma real e eficiente modernização
da contemporaneidade e de uma utópica pacificação da raça humana.
Apesar da natureza reflexiva, o ser humano nunca foi bom
em resolver os seus problemas na base da conversa. Transformar em tabu assuntos
como os desastres, os conflitos e as atrocidades causadas por uma índole incipiente
e primitiva nunca foi um bom caminho para a evolução da nossa própria
existência. Pautados na mentalidade dos cidadãos do mundo (não só os
japoneses), o impacto de uma catástrofe sendo refletido pela arte
cinematográfica sempre se configurou como uma bela estratégia para expor e
traduzir os dramas da nossa humanidade. Refletir sobre qual herança queremos
deixar para as futuras gerações é fundamental, e de filmes como esses que, a
princípio, podem soar como puro entretenimento, podemos adquirir os mais
valiosos aprendizados sobre os efeitos de um episódio devastador que (embora
sempre rodeado de controversas) teve o mais trágico dos fins, principalmente
para o Japão.
PS: Escapar deste mundo doente ainda não
é possível, infelizmente!
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