sexta-feira, 8 de maio de 2015

Três Assim #4 | O centenário de Orson Welles

É notório e quase proverbial dizer que uma carreira cinematográfica fundamentada por uma genialidade controversa é transparecida pela forte personalidade de um dos artistas mais célebres do século XX. Se estivesse vivo, o excêntrico Orson Welles teria completado os seus 100 anos nesta última quarta-feira.

Ator, roteirista e produtor cultural, Orson Welles começou no rádio e no teatro já somando um número incrível de experiências bem-sucedidas que o qualificaram como um dos profissionais mais inovadores e requintados do ramo. Canonizá-lo ou santificá-lo somente pelo vislumbro esmagador de sua estreia como cineasta em “Cidadão Kane” (1941); ou apenas pelo plano-sequência mais famoso da história do cinema que abre o estupendo “A Marca da Maldade” (1958); é um erro que dez entre dez pessoas comumente costumam cometer. O diretor é muito, mas muito maior do que isto.

Atuando em quase todos os filmes que realizava, Welles era preciso na conjugação de sua magistral direção com suas melancólicas interpretações (geralmente nos papéis de protagonista). Apesar das intermináveis pressões sofridas por estúdios pelos quais trabalhou ao longo de sua conturbada carreira como realizador, ele ainda conseguia assumir relativo controle de seus projetos, sempre colocando em evidência o quão funesta e calamitosa é a condição do ser humano em sua concernida intolerância perante o mundo.

Nos filmes de Orson Welles, essas malfadadas tendências malignas que nos acompanham desde os primórdios da humanidade podem ser observadas no singular “Soberba” (1942), no lúgubre “O Estranho” (1946), no kafkiano “O Processo” (1962) e no reflexivo “Verdades e Mentiras” (1973), por exemplo. Essas invariáveis ainda são empregadas de maneira sutil em “Macbeth - Reinado de Sangue” e “Othello” (1952), adaptações cinematográficas do cineasta para obras de William Shakespeare; e em “Grilhões do Passado” (1955) que ressoa a máxima da inocência perdida que já havíamos observado em “Cidadão Kane”.

Entretanto, as características multifacetadas deste astro fizeram com que o seu trabalho como ator fosse valorizado e controversamente desejado por muitos diretores e produtores de cinema ao longo de anos. E para comemorar a data, o Rotina Cinemeira fará diferente ao indicar na coluna “Três Assim” dessa semana três filmes onde Welles, sob a batuta de outros grandes diretores, fez a diferença emprestando todo o seu talento e aspereza para compor personagens sombrios inesquecíveis de algumas das mais notáveis produções do cinema mundial.

Jane Eyre (Jane Eyre, Estados Unidos, 1943)

Direção: Robert Stevenson

Órfã, desprezada pela família e após viver uma infância duramente triste, Jane Eyre (Joan Fontaine) deixa o colégio onde estava internada há alguns anos para trabalhar em uma misteriosa mansão como preceptora da pequena Adele (Margaret O’Brien), filha de Edward Rochester (Orson Welles). Jane e Edward acabam se apaixonando, mas ela descobre um terrível segredo que Rochester guardava por muito tempo, justamente no dia em que iriam se casar. Como consequência, tais revelações implicarão grandes dificuldades para a continuidade do romance do casal.

Baseado no romance homônimo de Charlotte Brontë, o roteiro adaptado por John Houseman, Aldous Huxley e do próprio Robert Stevenson foi posteriormente vinculado como novela em 1946 no programa de rádio de Orson Welles, o “The Mercury Summer Theatre on the Air”. Welles repetiu o magnético papel de Rochester, enquanto a atriz Alice Frost interpretou a sofrida Jane Eyre.

Sem que se estraguem as surpresas que o filme reserva, cabe ressaltar que a direção de Stevenson é exuberante, embora uma passagem curiosa mereça ser destacada. Durante o longa, há uma engenhosa cena de incêndio, construída com contornos sombrios e atmosfera gótica. A concepção e direção dessa famosa sequência são frequentemente atribuídas ao criativo Welles, mesmo ele nunca tendo sido creditado como tal.

Orson Welles ao lado de Joan Fontaine em "Jane Eyre" (1943) de Robert Stevensson
Twentieth Century Fox Film Corporation [us]

O Terceiro Homem (The Third Man, Reino Unido, 1949)

Direção: Carol Reed

O novelista americano Holly Martins (Joseph Cotten) viaja para a sombria Viena do pós-guerra a convite do oportunista Harry Lime (Orson Welles), um velho amigo que havia lhe prometido um emprego. Chegando à cidade, Holly se depara com o funeral de Harry e é informado que o amigo morreu em circunstâncias misteriosas. Impressionado com os fatos e determinado a investigar o caso, o escritor descobre várias inconsistências nos relatos dos companheiros de Lime e acaba se envolvendo em uma arrojada e perigosa rede de intrigas.

No início da produção de “O Terceiro Homem”, era forte o desejo de Carol Reed para que James Stewart e Orson Welles integrassem o elenco de protagonistas. Entretanto, um embate com o produtor David O. Selznick, que tinha o direito de aprovação dos nomes (e, inicialmente, preferia a dupla Joseph Cotten e Noel Coward para os papéis principais), acabou atravancando o começo das filmagens.

Selznick garantiu o protagonismo para Cotten e ainda emplacou Alida Valli na pele da bela e sedutora Anna Schmidt, mas acabou tendo que engolir à seco e ceder as insistentes pressões do diretor britânico em relação a Harry Lime. O resultado final é que, em uma aparição fantasmagórica na metade da projeção do longa, Welles talvez interprete, aqui, o personagem mais brilhante de sua carreira frente as câmeras.

Entre os anos de 1951 e 1952 o ator ainda estrelou uma série de rádio onde voltou a dar vida ao astucioso Harry Lime. As tramas capituladas narravam os acontecimentos anteriores aos do filme dirigido por Reed.

Orson Welles em "The Third Man" (1949) de Carol Reed - Carol Reed's Production [gb] | London Film Productions [gb]

O Homem que não Vendeu sua Alma (A Man for all Seasons, Reino Unido, 1966)

Direção: Fred Zinnemann

Vencedor de seis Oscars (incluindo melhor filme e melhor direção) em 1967, “O Homem que não Vendeu sua Alma” conta a história de Thomas More (Paul Scofield), um chanceler inglês que, na primeira metade do século XVI, se envolveu em um complicado conluio envolvendo o corrupto Rei Henrique VIII (Robert Shaw). More é obrigado pelo Rei a aprovar o seu divórcio com a Rainha e realizar um novo casamento com a sua amante. Mesmo se sentindo pressionado, ele acaba não concedendo ao monarca tal aprovação.

Católico fervoroso, Thomas More renuncia ao seu nobre título, mas ainda se vê perseguido pelo soberano inglês, ficando extremamente dividido entre a sua convicção religiosa e as obrigações com a realeza. Apático em relação ao caso e mantendo um silêncio sepulcral, More provoca ainda mais a ira do seu rei, o que acarreta uma batalha de poderes repleta de intrigas e manobras políticas que irão comprometer o destino do Homem, da Igreja e do País.

Embora austera e intransigente, a posição de Thomas More é admirável. Mesmo apologética, a figura que enxergamos no filme foi historicamente determinante para os rumos da reforma religiosa no Reino Unido. Cinematograficamente, More rendeu a Paul Scofield o Oscar de melhor ator (mais uma das seis estatuetas do longa). Egresso do teatro, o ator britânico foi uma escolha particular do diretor Fred Zinnemann que foi na contramão dos produtores que queriam Alec Guinness para o papel principal.

Em meio a estes embustes que percorrem as fases de pré-produções hollywoodianas encontramos Orson Welles, outra escolha do diretor para um papel que, embora pequeno (o do Cardeal Thomas Wolsey), estava sendo preterido por ninguém menos que Laurence Olivier. A sua aparição é curta, mas a interpretação é incrivelmente soberba e, mesmo sendo a opção original de Zinnemann, o garboso diretor diz ter dirigido a si próprio em suas poucas cenas.

Se a história é verdadeira ou se é simplesmente mais um dos ataques de vaidade do diretor, isso ninguém nunca vai saber. O fato realmente importante é que, por mais que as produções em que participou tenham tido diretores ou produtores severamente comprometidos com os projetos, sempre notaremos um toque da genialidade ou uma fração da excentricidade desse monstro sagrado do cinema chamado Orson Welles!

Orson Welles como o Cardeal Thomas Wolsey em "A Man for all Seasons" (1966) de Fred Zinnemann - Highland Films [gb]

É ISSO... BOM FIM DE SEMANA E BOAS SESSÕES!

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