quarta-feira, 3 de junho de 2015

Identidade Nacional #3 | Hoje eu quero Voltar Sozinho (2014)

(Hoje eu quero Voltar Sozinho, Brasil, 2014). Dirigido e roteirizado por Daniel Ribeiro. Elenco: Ghilherme Lobo, Fabio Audi, Tess Amorim, Lúcia Romano, Eucir de Souza, Selma Egrei, Isabela Guasco, Victor Filgueiras, Pedro Carvalho, Guga Auricchio, Matheus Abreu, Bárbara Pereira, Naruna Costa, Júlio Machado, Renata Novaes.

Ao lançar a coluna “Identidade Nacional”, o Rotina Cinemeira tinha como objetivo principal resgatar obras perdidas ou esquecidas em décadas anteriores, preferencialmente aquelas lançadas na Pré-Retomada do Cinema Brasileiro, verdadeiras preciosidades de uma época extremamente criativa e que, de maneira errônea e taxativamente preconceituosa, sempre foi classificada como uma fábrica de filmes de péssima qualidade. Permitir que um maior número de pessoas passe a ter contato com esses trabalhos é fazer a remição de uma autenticidade que não teve a apreciação merecida no passado. Entretanto, devido a um fenômeno raro ocorrido recentemente no circuito comercial do país, discutiremos sobre um clássico instantâneo, a pérola “Hoje eu quero Voltar Sozinho” (2014) do diretor paulistano Daniel Ribeiro.

A ideia excepcional de encaixá-lo neste espaço surgiu em menos de 24 horas, pois o longa (que já circulou por várias salas de cinema do Brasil no ano passado) fez parte e foi o destaque de ontem na programação do “Projeto Cinema em Transe”, uma mostra realizada há três anos no Sesc Palladium, em Belo Horizonte, e que vem recebendo a nossa total atenção desde a criação deste canal de comunicação. Ressaltamos sempre que a valorização de produções do circuito independente é fundamental para o fortalecimento da filosofia cinematográfica de um país na difícil missão de conquistar o seu espaço no mercado consumidor de cinema.

Vale à pena lembrar que a sessão ocorrida nesta última terça-feira (que ainda incluiu um debate com o diretor) foi fechada e exclusiva para professores, mediante um agendamento prévio. Todavia, tal eventualidade serviu para podermos fazer uma análise do quão importante foi a exibição do longa para este público tão distinto, destacando a relevância e os efeitos de uma posterior disseminação das mensagens e do compartilhamento dos ensinamentos do filme no ambiente escolar. Afinal, além do seu grande valor cultural, “Hoje eu quero Voltar Sozinho” também tem o poder de funcionar como uma ferramenta pedagógica?

No campo prático da interdisciplinaridade, a experiência é completamente viável. Além disso, o filme vem carregado de uma pluralidade cultural concatenada à assuntos que rotineiramente são temas de fervorosas discussões. Discussões essas que ultrapassam os muros das escolas e os ambientes familiares para se tornarem tópicos de interesse de toda uma sociedade, que dentre eles destacam-se: sexualidade na adolescência, diversidade e respeito à opção sexual, bullying e exclusão social, e autonomia e liberdade de escolha, para ficarmos só entre as matérias que o longa-metragem trata.

"Hoje eu quero Voltar Sozinho" (2014) de Daniel Ribeiro - Lacuna Filmes [br] | Polana Filmes [br]

No filme de Daniel Ribeiro temos como personagem central Leonardo (Ghilherme Lobo), um adolescente que possui deficiência visual e que, assim como todos os jovens de sua idade, está em busca da autoafirmação e da conquista de seu próprio lugar. Ele deseja ser mais independente e, para isso, precisa ir além do lidar com as suas próprias limitações e os preconceitos de algumas pessoas que, infelizmente, ainda existem de uma forma incrível e persistente. Buscando a sua liberdade e ansioso por viver novas experiências (incluindo a descoberta do amor), Leonardo (ou Léo) tem de enfrentar a superproteção dos pais e de Giovana (Tess Amorim), sua inseparável e apaixonada melhor amiga.

É Giovana que sempre esteve ao lado de Léo desde quando eram mais novos. Os dois faziam tudo juntos, desde acompanharem um ao outro no caminho de casa após o fim das aulas, até dividirem os seus segredos mais íntimos. Um certo dia, para o desespero e decepção da garota, o amigo lhe confessa o desejo de se libertar das amarras do cotidiano e revela o plano de fazer uma viagem de intercâmbio. Porém, a chegada de Gabriel (Fabio Audi), o novo aluno da escola, desperta sentimentos até então desconhecidos em Léo, fazendo-o redescobrir outras maneiras de enxergar (por que não?) e vivenciar o mundo.

“Hoje eu quero Voltar Sozinho” funciona, pois é carregado de simplicidade e doçura na abordagem de temas tão complicados como o tratamento das diferenças (tanto nas incapacidades ou deficiências físicas quanto nos tabus sobre sexualidade), tentames difíceis de serem trabalhados, inclusive, por professores em sala de aula. A autonomia que Léo tanto busca durante o filme deve ser sempre reforçada em discursos que observam os direitos sociais plenamente adquiridos (em uma conquista historicamente recente) por todos os portadores de qualquer tipo de deficiência. Políticas de inclusão social e o direito à facilitação de acessibilidade em lugares públicos, por exemplo, devem ser constantemente discutidos em todas as camadas da sociedade como forma de valorização, sobretudo, de nossa cidadania.

Já com relação às questões de diversidade sexual e da liberdade de orientação sexual basta lembrar que esses temas já estão integrados às Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos e que, desde o ano de 2004, o programa “Brasil sem Homofobia” vem sendo veiculado pelo Governo Federal de maneira exemplar. Apesar de tudo isso, o fato dos personagens principais viverem um romance homossexual se torna irrelevante, ou melhor dizendo, imperceptível em vista da meiga e afável relação entre Leonardo e Gabriel que, acima de tudo, são grandes amigos.

Encarar tudo com serenidade e naturalidade é o primeiro passo para vencer uma ignorância burra construída pelas aversões sociais e que, assim como na trama, devem se desenvolver de maneira leve, delicada e verdadeira. À medida em que as situações vão sendo postas de forma meticulosa em cena, começamos a notar que, independente de todas as externalidades, a perspectiva de cada indivíduo é única, e Léo está simplesmente descobrindo que ser um adolescente nos dias de hoje não é uma tarefa das mais fáceis.

Fabio Audi e Ghilherme Lobo em "Hoje eu quero Voltar Sozinho" (2014) de Daniel Ribeiro
Lacuna Filmes [br] | Polana Filmes [br]

Comovente e divertido, “Hoje eu quero Voltar Sozinho” foi reverenciado em muitos festivais de cinema do mundo justamente por ser uma obra simples e original, embora caminhe de forma funâmbula sobre alguns clichês presentes nos filmes feitos para adolescentes. O filme é uma extensão do projeto em curta-metragem “Eu não quero Voltar Sozinho” (2010) do próprio Daniel Ribeiro, um filme mais poderoso e com o discurso mais direto, que não precisou da amarras e elementos de temática jovem para mandar seu recado, restringindo a trama aos dilemas dos personagens de Ghilherme, Fabio e Tess (que repetem seus papéis e também são protagonistas neste filme).

Sucesso visualizado (e viralizado) por milhões de pessoas no YouTube, o curta alavancou a produção de um longa-metragem que já era certeza de sucesso, tanto é que abocanhou no 64º. Festival Internacional de Cinema de Berlim (um dos mais importantes do mundo) os prêmios FIPRESCI Prize, como Melhor Filme da Mostra Panorama, e o Teddy Award, como o Melhor Filme de temática LGBT entre os concorrentes da edição.

Deixando de lado o julgamento do merecimento ou não dos prêmios conquistados na Alemanha, bem como o credenciamento que resultou na escolha do filme para ser o representante do Brasil na tentativa de ser um dos indicados ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na edição deste ano, cabe destacar que “Hoje eu quero Voltar Sozinho” nunca deixará de ser um filme relevante e importantíssimo da nossa cinematografia tendo vista o nosso cenário de lançamentos recentes do circuito alternativo que tentam ganhar um espaço em salas comerciais. Além da crítica, o filme também foi sucesso de público, e permaneceu em cartaz por muitas semanas até mesmo em grandes redes de cinema que hoje dominam os mercados de produção, distribuição e exibição de conteúdo audiovisual no Brasil. Lembrando ainda que o valor cultural e intimista que o cinema sempre possuiu perde a sua força frente ao amplo domínio da indústria hollywoodiana nos mercados consumidores mundo a fora.

Apesar de tudo isso, as escolhas do país para participar dos grandes festivais e mostras de cinema no planeta ainda resguardam certa coerência e, no caso específico do Oscar deste ano, filmes que outrora teriam espaço garantido para tentar concorrer à “tão sonhada” estatueta, como o drama “Entre Nós” (2013) de Paulo Morelli e Pedro Morelli e o suspense “O Lobo atrás da Porta” (2013) de Fernando Coimbra, apesar de ótimos perderam espaço para discurso sutil mas arrebatadoramente engajado do quase pueril filme de Daniel Ribeiro. Outros filmes ainda mais maduros, tanto na abordagem quanto na execução técnica, e de mesma temática estavam na disputa como “Praia do Futuro” (2014) de Karim Aïnouz e “Tatuagem” (2013) de Hilton Laceda, também deram lugar para a singeleza narrativa de “Hoje eu quero Voltar Sozinho”.

O mundo de descobertas de Léo “venceu” essa corrida justamente pelo momento de discussão de algumas controvérsias serem extremamente oportunas, buscando no cinema um ótimo recurso de divulgação e ferramenta auxiliar para o esclarecimento de polêmicas que incomodam, provocam e desafiam uma população, à princípio, alienada. É digno de comemoração observar “Hoje eu quero Voltar Sozinho” ganhando o seu devido espaço e respeito dentre as demais produções nacionais ao longo destes dois últimos anos, mas o caminho ainda é árduo, tanto no combate ao caráter predatório do atual mercado de cinema no país quanto na abordagem de temas de amplo interesse social, formador de caráter e opinião de toda uma sociedade.

A luta continua...


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