sábado, 17 de dezembro de 2016

Memórias #23 | Andrea Tonacci (1944 - 2016)

Um ano tão estranho e amedrontador quanto o de 2016 não poderia terminar sem nos aplicar o mais duro de seus golpes, levando consigo um verdadeiro gigante, expoente máximo do cinema nacional e imortal no coração de todos aqueles que o admiravam. No fim da tarde desta última sexta-feira, dia 16, perdemos Andrea Tonacci. O cineasta faleceu em São Paulo, aos 72 anos, vítima de um câncer no pâncreas descoberto em meados de maio.

Nascido no ano de 1944 em Roma, na Itália, Andrea Tonacci migrou para o Brasil junto com a família ainda criança. Tentou se formar em engenharia e arquitetura, mas abandou as faculdades para se dedicar ao cinema. Estreou frente às câmeras com o curta-metragem “Olho por Olho” (1966), que mostra um grupo de jovens amigos da classe média paulistana vagueando de carro pelas ruas da cidade e discutindo sobre assuntos corriqueiros frutos de suas condicionadas alienações.

Roteirizado e fotografado pelo próprio Tonacci, “Olho por Olho” foi montado pelo amigo Rogério Sganzerla, que no mesmo período também dava os primeiros passos na carreira de diretor com a realização de outro excelente curta, “Documentário” (1966). As peças foram fundamentais para estabelecer os marcos iniciais de eclosão do instigante e subversivo Cinema Marginal, corrente que ia de encontro ao exacerbado intelectualismo do Cinema Novo e enfrentava de maneira ferrenha a censura imposta pela ditadura militar. Inclusive, são de Andrea Tonacci dois dos trabalhos mais revolucionários e transgressores do movimento: “Blábláblá” (1968) e “Bang Bang” (1971).

O cineasta italiano radicado no Brasil Andrea Tonacci (1944 - 2016) - Divulgação

Corajoso e paradoxal, o curta-metragem “Blábláblá” manda um recado desconcertante para os governantes militares brasileiros da época. Na sátira, o ator Paulo Gracindo interpreta um demagógico ditador que justifica o seu programa de governo através de um discurso hipócrita, fantasioso e versado em humanidades. Já o formidável e inabitual filme policial “Bang Bang” é uma verdadeira potência cinematográfica. Alegoria delirante e original marcada como uma das principais representantes do chamado “cinema de invenção”, essa peculiar obra-prima ficou restrita à programação de cineclubes e salas de cinema alternativas, mas acabou sendo selecionada para a Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes em 1971.

Digno de todo louvor, Andrea Tonacci foi o grande homenageado na 19ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, realizada no início deste ano. Foi nesse mesmo evento que, há dez anos atrás, o cineasta apresentou pela primeira vez “Serras da Desordem” (2006), sem dúvidas, um dos filmes mais importantes do século XXI e considerado por muitos o seu trabalho mais impecável. O longa reforça as discussões de espaços em conflito no Brasil e mistura documentário e ficção ao deixar registrado o extermínio da tribo Awá-Guajá nos anos 70 na Amazônia. A partir dessa tragédia, passamos a conhecer a história do índio Carapirú, sobrevivente do massacre que passa a viver em Brasília. O contato de Tonacci com os povos indígenas e os seus esforços por manter viva uma identidade cultural historicamente perseguida e desmantelada renderam o merecido reconhecimento de organizações humanitárias e ambientais ao redor do mundo, bem como premiações nos festivais de cinema mais importantes do país.

A perda de um gênio como Tonacci é mais do que lamentável. Falar de suas obras e de seu legado é uma tarefa difícil e praticamente infindável. O que nos consola é oportunidade de se emocionar com “Já Visto Jamais Visto” (2014), projeto que reúne um vasto conjunto de imagens inéditas registradas por ele ao longo de sua vida: intimidades de família, experiências em viagens, bastidores de filmagens e cenas de projetos que nunca chegaram a ser concluídos. Com o lançamento de seu último longa, Andrea Tonacci acabou alcançando a imortalidade antes mesmo de abandonar ou seus planos na Terra. Só temos que agradecer pela sua luminosa existência! Vai deixar saudades...

Descanse em paz! (1944 - 2016)

Dez filmes dirigidos por Andrea Tonacci que indico (em ordem de predileção):

01 - Bang Bang (Bang Bang, Brasil, 1971)

02 - Serras da Desordem (Serras da Desordem, Brasil, 2006)

03 - Já Visto Jamais Visto (Já Visto Jamais Visto, Brasil, 2014)

04 - Blábláblá (Blábláblá, Brasil, 1968)

05 - Conversas no Maranhão (Conversas no Maranhão, Brasil, 1983)

06 - Olho por Olho (Olho por Olho, Brasil, 1966)

07 - Biblioteca Nacional (Biblioteca Nacional, Brasil, 1997) - direção dividida com Luiz Rosemberg Filho

08 - Os Araras (Os Araras, Brasil, 1981)

09 - Guaranis do Espírito Santo (Guaranis do Espírito Santo, Brasil, 1979)

10 - Interprete Mais, Ganhe Mais (Interprete Mais, Ganhe Mais, Brasil, 1995)

"Bang Bang" (1971) de Andrea Tonacci - Total Filmes [br]

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