O panorama sombrio que retrata uma juventude transviada inserida
na desiludida sociedade dos anos 90; um filme que sobrevive pela discussão
dicotômica do embasamento fraco de seu roteiro versus o delírio visual provocado
por seus efeitos especiais; a original e controversa adaptação cinematográfica
de uma das tragédia mais famosas de William Shakespeare; a compreensão das
frustrações e dos dilemas sociais através do antagonismo sentimental que
aproxima ou distancia o amor, o sexo e a morte; e o filme responsável por
repaginar os gêneros do terror e do horror, traduzindo os seus códigos e
transferindo a angústia e o medo para os dramas reais do mundo contemporâneo.
Continue acompanhando a retrospectiva especial que o Rotina
Cinemeira faz ao longo deste mês de novembro. Estamos apresentando 20
importantes trabalhos produzidos e lançados no ano de 1996 que, cada um à sua
maneira, tentam manter o fôlego e chegar vigorosos em 2016, completando os seus
20 anos. Filmes que, se ainda não estão, já deveriam estar nas estantes (ou nos
HDs) de qualquer cinéfilo.
Trainspotting - Sem
Limites (Trainspotting, Reino Unido,
1996)
Direção: Danny Boyle
Baseado no polêmico romance do escritor
escocês Irvine Welsh, “Trainspotting -
Sem Limites” é um exemplo genuíno de clássico instantâneo, não só por ter
se transformado em um excepcional fenômeno de bilheteria no Reino Unido e nem
por ter sido amplamente elogiado pela crítica ao redor do mundo. O segundo longa
do diretor inglês Danny Boyle representou um verdadeiro estrondo
cinematográfico, tornando-se um dos trabalhos mais cultuados dos anos 90; obra que
sobrevive muito bem à passagem do tempo justamente por delinear e escancarar o
retrato fiel de uma adolescência espúria, transviada e rebelde.
Na gíria da juventude escocesa, “trainspotting” significa uma atividade insensata
que não possui a menor concepção de responsabilidade, algo tolo ou desponderado
que se faz exclusivamente para passar o tempo. A expressão resume com exatidão
a vida de Renton (Ewan McGregor), um jovem profundamente imerso no mundo das
drogas e em constante luta para se libertar do vício, muito embora continue mantendo
um completo fascínio pela euforia que o entorpecimento lhe proporciona. Em meio
a recaídas e na companhia de amigos igualmente desajustados, o jovem suburbano perambula
sem rumo pelas ruas de Edimburgo se embebedando em pubs e procurando qualquer
tipo de confusão.
Fugindo do cotidiano banal e renunciando ao destino de se
tornarem jovens sem perspectivas para a vida adulta, conhecemos Sick Boy (Jonny
Lee Miller), um traficante casual e especialista em filmes de James Bond; Spud (Ewen Bremner), um sujeito que
ainda tenta procurar emprego, mas nunca consegue por se julgar um tremendo
fracassado; e Begbie (Robert
Carlyle), um psicopata intempestivo e violento que arruma briga com qualquer
pessoa que o provoque, ou não. Junta-se ao grupo Tommy (Kevin McKidd), que não
pode ser considerado viciado, mas que eventualmente acaba seguindo os mesmos passos
dos companheiros. A heroína é o barato predileto, capaz de produzir euforia extrema
em uma única picada, um breve alívio que dura o tempo necessário para abrandar
os problemas e rebaixar a nossa condição de existência ao denominador zero.
O panorama controverso e nada convencional explanado por “Trainspotting - Sem Limites” é duro, sombrio
e desolador. Sobretudo porque a rotina alucinante vivida por esses jovens não
vinha às telas para promover e levantar a bandeira do livre uso das drogas. De
maneira inteligente, sem moralismos e sem meia palavras, Boyle conseguiu
traduzir a mensagem de desesperança que Welsh pretendia transmitir ao publicar seu
livro no início da década de 90.
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"Trainspotting" (1996) de Danny Boyle - Channel Four Films [gb] | Figment Films [gb] The Noel Gay Motion Picture Company |
Twister (Twister, Estados Unidos, 1996)
Direção: Jan de Bont
O holandês Jan de Bont sempre foi um excelente
cinegrafista e trabalhou como diretor de fotografia em excelentes filmes,
muitos deles em parceria com o compatriota Paul Verhoeven; isso aconteceu bem
antes de ambos deixarem a Europa para construir suas carreiras em Hollywood. A
sintonia fina e a maneira como de Bont operava suas câmeras foram essenciais
para que ele desenvolvesse algumas características peculiares e estabelecesse
uma maior afinidade com o gênero de ação, responsável também pela tônica
impressa em todos os seus cinco longas, incluindo o terror “A Casa Amaldiçoada” (1999).
Entretanto, foi o seu primeiro trabalho como diretor que
provocou grande estouro. O eletrizante “Velocidade
Máxima” (1994) foi elogiado tanto pelo público quanto pela crítica
especializada. “Twister”, o projeto
seguinte, foi recepcionado com o mesmo alvoroço, mas não construiu uma carreira
de sucesso e sequer obteve reconhecimento semelhante. Produzido pela Amblin
Entertainment de Steven Spielberg, o filme conta a história de dois grupos de
caçadores de tempestades rivais que, durante uma tormenta sem precedentes no
deserto de Oklahoma, pretendem entrar para a história do mundo científico ao
tentar implantar sensores em tornados. Os dispositivos iriam transferir para um
computador informações necessárias para prever as suas chegadas nas cidades,
prevenindo assim maiores catástrofes. A frente de uma das equipes está a
Doutora Jo Harding (Helen Hunt), uma jovem obcecada pela ideia de enfrentar
tornados. Ainda criança a cientista presenciou a morte do pai, impiedosamente sugado
por um destes turbilhões de vento.
Momentaneamente elencado como o filme favorito de muitos
adolescentes da década de 90, “Twister”
encanta pelos efeitos especiais oferecidos; funciona como um divertido
espetáculo visual digno das melhores sessões da “Sessão da Tarde”, mas sem nunca passar disso. A honesta
interpretação de Helen Hunt, por exemplo, representa a tentativa falha de
sustentar o filme por um eixo dramático diluído pela ação. Fora isso,
percebemos nas revisões o quanto o filme envelhece mal, chegando ao ponto de
constatarmos que a aberração científica proposta pelo roteiro não sublima a
antologia de imagens e a engenhosa gama de sons produzidos. Clássico ou não, o
filme tem a seu favor a discussão dessa dicotomia para se manter vivo.
“Twister” ainda tem a curiosa marca de ter sido
o primeiro filme da história de Hollywood (e de todos os Estados Unidos)
lançado no formato de DVD, inicialmente programado como um teste para o sistema
“Surround Soud 2.1”. Uma cópia
relíquia, sem querer, histórica!
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"Twister" (1996) de Jan de Bont - Warner Bros. [us] | Universal Pictures [us] Amblin Entertainment [us] | Constant c Productions [us] |
Romeu + Julieta (Romeo + Juliet, Estados Unidos, 1996)
Direção: Baz Luhrmann
A profusão visual e a estética glamorosa presentes nas
obras do australiano Baz Luhrmann são marcas mundialmente conhecidas desde a
sua tímida estreia como cineasta no longa “Vem
Dançar Comigo” (1992). Mas foi apenas quatro anos mais tarde, com a
original e controversa adaptação cinematográfica da tragédia shakespeariana “Romeu e Julieta”, que o talentoso
diretor e roteirista ganhou projeção internacional no meio cinematográfico.
Trabalhando a quatro mãos com o amigo e constante colaborador Craig Pearce,
Luhrmann simplificou a trama focando somente nos episódios mais famosos da
relação de discórdia entre Montéquios e Capuletos e, mesmo mantendo o requinte
dos diálogos, foi certeiro ao trazer os acontecimentos para os dias atuais; o
que acabou conquistando de forma implacável o público adolescente.
O hype de “Romeu + Julieta” entre os jovens foi
ainda maior pela presença de Leonardo DiCaprio no elenco. À época, o novo ídolo
teen garantia o bom desempenho nas
bilheterias de todas as produções que participava, independente da qualidade
das mesmas; e esse destaque é dado sem sequer mencionar o aumento do seu prestígio
no mundo do cinema após estrelar dois filmes de sucesso: “Eclipse de uma Paixão” e “Diário
de um Adolescente”, ambos de 1995. No embuste contemporâneo de Shakespeare,
DiCaprio vive Romeu Montéquio, um jovem que acaba convencido pelo primo,
Benvolio (Dash Mihok), e pelo melhor amigo, Mercutio (Harold Perrineau), a
participar de um baile de máscaras realizado na fictícia Verona Beach.
A cidade de ares californianos torna-se o palco do
descarrego de todas as animosidades dos Montéquios e da fúria ensandecida dos
Capuletos, famílias que controlam as maiores parcelas dos conglomerados
empresariais instalados por lá. O baile para onde Romeu, Benvolio e Mercutio
estão se dirigindo trata-se, inclusive, de uma festa promovida por Fulgencio
Capuleto (Paul Sorvino) para noivar sua filha, Julieta (Claire Danes), com o
filho do governador, Dave Paris (Paul Rudd); tudo fruto de uma transação
comercial estratégica. Como casamentos arranjados geralmente estão fadados ao
fracasso, ao contrário dos romances proibidos, Romeu e Julieta se apaixonam
instantaneamente e prometem ir às últimas consequências para manter viva uma
relação ameaçada pela belicosa rivalidade entre suas famílias.
Carros substituem cavalos; espadas dão lugar a armas de
fogo; e a música pop embala toda essa crônica sobre a morte (esta, a única
imutável). Mesmo com imperfeições, “Romeu
+ Julieta” traduz de maneira responsável essa espécie de modernização
suburbana de uma das mais famosas peças de William Shakespeare.
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"Romeo + Juliet" (1996) de Baz Luhrmann - Bazmark Films [us] | Twentieth Century Fox Film Corporation [us] |
Crash - Estranhos Prazeres
(Crash, Canadá | Reino Unido, 1996)
Direção: David
Cronenberg
Vencedor do Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes
de 1996, onde também foi nomeado à Palma de Ouro, “Crash - Estranhos Prazeres” se envereda por particularidades da
subcultura underground para levar-nos a compreender as frustrações e os dilemas
do modo de vida predominante na sociedade contemporânea, sobretudo a ocidental.
Distando da linha comportamental, mas sem se desprender inteiramente dela, estão
os nossos maiores antagonismos sentimentais: o amor, o sexo, a morte e o
distanciamento em relação aos outros seres humanos.
Baseado no romance homônimo do britânico J. G. Ballard, o
filme tangencia o drama particular do publicitário James Ballard (James
Spader), que tem a vida completamente abalada após se envolver em um violento
acidente automobilístico. O seu carro atinge outro veículo no qual estava um
casal; o homem acaba morrendo e a mulher, Helen Remington (Holly Hunter), fica
por algum tempo internada em estado grave. Após o trauma e a natural fase de
não aceitação, Helen decide procurar James que, por sua vez, passa a
desenvolver uma doentia atração sexual por ela. Os dois se tornam amantes e
passam a frequentar reuniões de um grupo de pessoas entediadas com suas
relações afetivas que buscam elevar a satisfação e os prazeres libidinosos
justamente na reconstrução de famosos desastres com automóveis.
O preenchimento do vazio estranhado destas pessoas se dá
por um fetiche mordaz que é, ao mesmo tempo, inconsequente e compassivo. Afinal,
para conseguir atingir o êxtase ou o orgasmo, as reconstituições são
propositalmente sobrepensadas e feitas sem nenhuma segurança, aumentando de
forma sensível a excitação e o risco para os participantes. Como consequência,
a descoberta deste prazer atípico também faz com que James e sua esposa,
Catherine (Deborah Kara Unger), revigorem o apetite sexual da relação
permitindo que todas as fantasias comecem a ser realizadas, quase sempre no
interior de carros acidentados.
Um dos trabalhos mais profundos e interessantes de David
Cronenberg, “Crash - Estranhos Prazeres”
merece constantes revisões, justamente por tratar da expressão de sentimentos
da maneira mais complexa possível, utilizando o sexo e sua natural
característica transgressora como plano de desenvolvimento, tudo dentro de uma
temática constantemente mal vista ou mal interpretada no cinema. Classificar o
filme como uma peça depravada de “soft-porn”,
por exemplo, representa somente uma tentativa fracassada de rechaçar a
verdadeira mensagem que ele transmite: a de que todos nós somos movidos por um
comburente mais forte que o amor e a morte.
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"Crash" (1996) de David Cronenberg - Alliance Communications Corporation [ca] Movie Network, The (TMN) [ca] | Recorded Picture Company (RPC) [gb] | Téléfilm Canada [ca] |
Pânico (Scream, Estados Unidos, 1996)
Direção: Wes Craven
Grande representante do gênero de horror e maior nome dos
filmes de terror para adolescentes, Wes Craven foi um dos principais
responsáveis por colocar nas telas de cinema todos os nossos piores pesadelos.
O diretor primava pelo entretenimento sem nunca deixar de lado o sadismo e o
realismo brutal, características que sempre permeavam as narrativas de seus
filmes e, sobretudo, definiam a funesta personalidade de suas principais
personagens. Foi dessa forma que Craven obteve grandes elogios, conquistando
reconhecimento já em seu primeiro trabalho, o amedrontador e controverso “Aniversário Macabro” (1972).
Entretanto, o dono do imaginário inventivo e
fantasmagórico que foi capaz de idealizar “A
Hora do Pesadelo” (1984), uma das obras-primas do terror moderno, entrava
nos anos 90 espalhando dúvidas e incertezas sobre a sua real capacidade de
criação com a produção de filmes que não empolgaram o público como, por
exemplo, “As Criaturas Atrás das Paredes”
(1991), hoje um clássico cult; e “Um
Vampiro no Brooklyn” (1995), o perdoável deslize. Quando muitos davam como
certa o fim de uma carreira relativamente curta, Wes Craven surpreende ao
assinar “Pânico”, dando início a uma
das franquias mais populares e bem-sucedidas de todos os tempos.
Com sucesso instantâneo e estouro assombroso nas
bilheterias dos Estados Unidos, “Pânico”
ainda conta com um dos prólogos mais assustadores e horripilantes da história
do cinema. Em uma misteriosa chamada telefônica, um sujeito fanático ameaça a
vida da jovem Casey Becker (Drew Barrymore), que só sobreviveria se respondesse
corretamente às perguntas de um macabro quiz sobre os clássicos filmes de
terror americanos. Já na trama principal, a inocente e virtuosa Sidney Prescott
(Neve Campbell) não mede esforços para combater e sobreviver ao mesmo maníaco
que apavorou Casey. A garota ainda contará com a ajuda de Gale Weathers
(Courteney Cox), uma famigerada repórter sensacionalista que segue os rastros
do serial killer, que se revela um
completo trapalhão escondido atrás de uma (famosa) máscara ridiculamente
medonha.
“Pânico” foi o grande responsável por repaginar
o gênero de terror, traduzindo os seus códigos e transferindo a angústia e o
medo para os dramas reais da contemporaneidade; além de ter possibilitado que
Wes Craven brincasse com os próprios clichês e convenções dos filmes que o
tornaram famoso. A sua franquia se lançou com uma sequência imediata, “Pânico 2” (1997), e uma mais vindoura, “Pânico 3” (2000); anos mais tarde veio “Pânico 4” (2011), último projeto
comandado pelo diretor, falecido no ano passado.
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"Scream" (1996) de Wes Craven - Dimension Films [us] | Woods Entertainment [us] |
Para ver ou relembrar os filmes que
foram apresentados na PARTE I da
nossa retrospectiva, basta visitar o artigo clicando no link AQUI.
E continuem acompanhando a nossa
revisão cinematográfica, que retornará com PARTE III já na próxima semana!
Até lá...
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