sábado, 28 de janeiro de 2017

Memórias #26 | John Hurt (1940 - 2017)

Encarar mais de duzentos trabalhos distribuídos ao longo de 65 anos de carreira não parece ser tarefa fácil nem mesmo para algumas das mais célebres personalidades do mundo das artes. Ainda assim, é possível se deparar com algum astro fora de série que tenha construído esse primoroso currículo de maneira extremamente admirável. Figura exponencial do cinema e do teatro britânico, John Hurt faleceu nesta última sexta-feira, dia 27 de janeiro, aos 77 anos. O ator lutava contra um câncer no pâncreas há quase dois anos.

Membro da conceituada Royal Academy of Dramatic Art, John Hurt fez a sua estreia nos palcos londrinos no ano de 1962. Após participar de um par de produções para a televisão e de uma sequência de três filmes menores na primeira metade da década de 60 (incluindo o ótimo “Um Grito de Revolta”), o ator despontou para o cinema no longa “O Homem que não Vendeu sua Alma” (1966) do diretor Fred Zinnemann. O convite para participar do projeto veio logo após Zinnemann ficar impressionado com a versatilidade e domínio de palco de Hurt no espetáculo “Little Malcolm and His Struggle Against the Eunuchs” (1966). Eloquente e ácida comédia dramática, a peça ganhou, inclusive, uma versão cinematográfica em 1974, dirigida por Stuart Cooper e protagonizada pelo próprio John Hurt.

O requinte e a sagacidade sempre ofereceram um tom imponente às interpretações do ator, permitindo que ele construísse uma trajetória sólida e repleta de personagens inesquecíveis. Reverenciado por suas distintas atuações, acabou se tornando um artista respeitado em seu meio e homenageado nos mais importantes festivais de cinema do mundo. John Hurt foi indicado sete vezes ao BAFTA, o maior prêmio do cinema e da televisão no Reino Unido, vencendo em três ocasiões: melhor ator em filme para a televisão por “Vida Nua” (1975) de Jack Gold; melhor ator coadjuvante por “O Expresso da Meia-Noite” (1978) de Alan Parker; e melhor ator por “O Homem Elefante” (1980) de David Lynch. Em 2012 ele ainda viria a receber um prêmio especial da academia britânica pelo conjunto de sua obra e por sua excepcional contribuição para o Cinema.

O ator britânico John Hurt (1940 - 2017) em "1984" (1984) de Michael Radford
Umbrella-Rosenblum Films Production [gb] | Virgin [gb]

Coincidentemente, as laureadas interpretações de John Hurt em “O Expresso da Meia-Noite” e “O Homem Elefante” também foram devidamente reconhecidas pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, que acabou indicando o ator ao Oscar pelos seus papéis nestas duas ocasiões. Certamente, Max, o prisioneiro nauseabundo e viciado em heroína do primeiro filme, foi o seu personagem mais ordinário, repulsivo e genial; já John Merrick, a deformada, exótica e sensível figura que dá nome ao segundo filme, escancara toda a magnitude das qualidades de Hurt como artista que, mesmo por trás de uma maquiagem extremamente carregada, entrega um trabalho memorável, o mais humano e verdadeiro de sua carreira.

Mesmo com a enorme lista de personagens marcantes, Hurt ainda é constantemente lembrado por ser a figura central de uma das cenas mais apavorantes da história do cinema de terror, presente no irretocável “Alien, o Oitavo Passageiro” (1979) de Ridley Scott. O ator interpretou o oficial Kane, um dos tripulantes da espaçonave Nostromo que, acometido por um mal estar súbito, acaba surpreendendo todos os colegas de missão quando um alienígena rasga o seu peito de dentro para fora o matando de forma instantânea. A situação completamente inesperada instaura o caos e o medo, reverberando a escatologia do horror e da ficção científica em um legítimo clássico atemporal.

A lista de bons filmes não para por aí com John Hurt sempre figurando, década após década, em projetos grandiosos como a adaptação do revolucionário clássico de George Orwell “1984” (1984) dirigido por Michael Radford; o não menos distópico “V de Vingança” (2005) de James McTeigue; o execelente thriller “O Espião que Sabia Demais” (2011) de Tomas Alfredson; além da participação em franquias de sucesso como as de “Harry Potter” e “Indiana Jones”. Apesar da doença, John Hurt nunca chegou a se afastar do trabalho, tanto que deixa quatro trabalhos inéditos já concluídos e pode ser visto nas salas de cinema em “Jackie” (2016) de Pablo Larraín, um dos principais destaques desta temporada de premiações.

Por fim, destacamos que o raro comprometimento somado ao talento indiscutível colocam John Hurt como um dos maiores da história!

Que agora descanse em paz... (1940 - 2017)

Dez filmes com John Hurt que indico (em ordem de predileção):

01 - O Expresso da Meia-Noite (Midnight Express, Reino Unido | Estados Unidos, 1978) - de Alan Parker

02 - O Homem Elefante (The Elephant Man, Estados Unidos | Reino Unido, 1980) - de David Lynch

03 - O Portal do Paraíso (Heaven’s Gate, Estados Unidos, 1980) - de Michael Cimino

04 - Alien, o Oitavo Passageiro (Alien, Reino Unido | Estados Unidos, 1979) - de Ridley Scott

05 - O Espião que Sabia Demais (Tinker Tailor Soldier Spy, França | Reino Unido | Alemanha, 2011) - de Tomas Alfredson

06 - Tiros em Ruanda (Shooting Dogs, Reino Unido | Alemanha, 2005) - de Michael Caton-Jones

07 - 1984 (1984, Reino Unido, 1984) - de Michael Radford

08 - O Casal Osterman (The Osterman Weekend, Estados Unidos, 1983) - de Sam Peckinpah

09 - V de Vingança (V for Vendetta, Estados Unidos | Reino Unido | Alemanha, 2005) - de James McTeigue

10 - S.O.S. - Tem um Louco Solto no Espaço (Spaceballs, Estados Unidos, 1987) - de Mel Brooks

John Hurt contracena com Anne Bancroft em "The Elephant Man" (1980) de David Lynch - Brooksfilms [us]

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