Já é uma tradição para cinéfilos e amantes dos bons
filmes em Belo Horizonte aguardar ansiosamente a divulgação de mostras
especiais dentro da programação anual do Cine Humberto Mauro. Desde algum tempo
(e ano após ano) a Casa oferece ao público retrospectivas integrais dos
principais cineastas da História do Cinema Mundial. Em 2014, por exemplo,
Ingmar Bergman e Stanley Kubrick tiveram todas as suas obras reunidas em
eventos especiais dedicados às suas respectivas carreiras. Ainda no ano
passado, o próprio Humberto Mauro, grande pioneiro do Cinema Brasileiro, teve o
seu maior número de títulos agrupados naquela que se tornou a mais completa
mostra dedicada à sua carreira já realizada no Brasil.
E depois de ter homenageado o diretor que dá nome à importante
sala de cinema do Palácio das Artes, o Cine Humberto Mauro agora dedica a sua
programação a mais um grande cineasta brasileiro com a exibição da Mostra “Joaquim Pedro de Andrade - Integral”. Do dia 30 de julho ao dia 6 de agosto, o público da capital
mineira poderá conferir a filmografia completa do diretor carioca, nome sempre respeitado
no circuito nacional e internacional durante os pouco mais de 20 anos de uma
breve e brilhante carreira. Serão apresentados, em formato de películas
belissimamente restauradas, todos os seus 14 filmes, sendo seis longas e oito
curtas-metragens. Além disso, será apresentado o documentário “Histórias Cruzadas” (2008), que aborda
a obra de Joaquim Pedro do ponto de vista afetivo familiar e é dirigido por
Alice de Andrade, filha do cineasta.
Um país com urgência de bradar tanto as suas conquistas
quanto, principalmente, as suas mazelas. Foi esse o cenário encontrado por
Joaquim Pedro de Andrade que, ao lado de cineastas como Glauber Rocha, Leon
Hirszman e Rogério Sganzerla propunham discutir e problematizar a crueza da
sociedade brasileira através da produção de seus filmes, sempre influenciados
de maneia direta pela Nouvelle Vague Francesa e pelo Neorrealismo Italiano.
Tais características acabaram transformando-os nos principais expoentes do
movimento que ficou conhecido como Cinema Novo Brasileiro.
No caso de Joaquim Pedro de Andrade, a maioria das obras
(tanto os documentários quanto as ficções) também buscava manter uma relação
estreita com a literatura brasileira e com os seus principais representantes. A
arte literária é, inclusive, uma das grandes responsáveis por criar os maiores
mitos e lendas do imaginário popular, sendo que esses são capazes de discutirem
e retomarem a própria linguagem cultural do país estabelecendo, ainda, bases
extremamente fortes para a construção e a reconstrução de uma identidade
nacional que não pode ser perdida jamais.
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O cineasta carioca Joaquim Pedro de Andrade (1932 - 1988) - Divulgação |
Em seus dois primeiros filmes, por exemplo, Joaquim Pedro
de Andrade acompanha intimamente as rotinas de manhãs ordinárias vividas pelo
poeta Manuel Bandeira e pelo sociólogo Gilberto Freyre em pequenos
documentários de curta-metragem. “O Poeta
do Castelo” e “O Mestre de Apipucos”,
ambos de 1959, colocam os prodigiosos e quase quiméricos intelectuais como
quaisquer um de nós e refletindo que, para construir e contribuir de forma
direta com os anseios de nação, basta que mantenhamos vivos os nossos sonhos e
os exercícios de nossas mentes, além de continuarmos fazendo o nosso próprio
café da manhã, datilografarmos os nossos próprios trabalhos ou, simplesmente,
andarmos de forma tranquila pelas ruas das cidades em que moramos.
A relação de Joaquim Pedro de Andrade com as artes,
sobretudo com a literatura, foi estabelecida desde a sua infância. Ele era
filho do jornalista mineiro Rodrigo Melo Franco Andrade, primeiro diretor do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, atual IPHAN) e que
tinha, em seu ciclo convencional de amizades, os mais importantes pensadores e
estudiosos brasileiros da época. O próprio Manuel Bandeira era, inclusive,
grande amigo da família Andrade e padrinho de crisma do, até então, jovem e
promissor diretor. Tal relação fez com que Joaquim Pedro se aproximasse dessas
grandes obras que, futuramente, o fizeram adaptar as suas primeiras ficções. “O Padre e a Moça” (1966) é baseado em
poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade; e “Macunaíma” (1969) é a sua primorosa adaptação do não menos
grandioso romance de Mário de Andrade, companheiro de seu pai e de Manuel
Bandeira na idealização e inauguração da Semana de Arte Moderna de 1922, em São
Paulo.
“Macunaíma”, a versão cinematográfica do grande
clássico modernista publicado originalmente em 1928 é, sem dúvida, o maior
sucesso de crítica de Joaquim Pedro de Andrade e, talvez, a sua obra mais
reconhecida popularmente. Nela, acompanhamos a trajetória de Macunaíma (Grande
Otelo/Paulo José), o preguiçoso e traiçoeiro “herói sem nenhum caráter”, que
nasce embrenhado na mata virgem como um menino negro. De preto retinto, virou
branco; e depois de adulto abandona o sertão para viver na cidade grande junto
com os seus dois irmãos. Conhecendo e amando prostitutas e guerrilheiras,
Macunaíma termina enfrentando todos os tipos de “inimigos” na tentativa de
reconquistar um antigo amuleto que ganhara. No seu caminho surgirão vilões
insólitos, policiais (des)ordeiros e o excêntrico milionário Venceslau Pietro
Pietra (Jardel Filho).
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"Macunaíma" (1969) de Joaquim Pedro de Andrade - Condor Filmes [br] | Filmes do Serro [br] | Grupo Filmes [br] Instituto Nacional de Cinema (INC) [br] |
Com forte apelo social, “Macunaíma” estabelece uma sensível e direta relação com o público
espectador do filme. Para torná-lo ainda mais acessível, Joaquim Pedro de
Andrade roteiriza uma história bem-humorada conduzida por diálogos inteligentes
e carregados de ironias preservadas da história original, além de recorrer a
uma bela fotografia tomada por cores fortes e contornos sólidos, construindo
visuais encantadores. Segundo o próprio cineasta dizia, “‘Macunaíma’ é um filme que encontra não só o Brasil, mas a América
Latina em todos os sentidos” e, na busca natural por um legítimo herói
nacional, um salvador da pátria, acabamos presenciando a conformada história de
um homem comum sendo devorado pelo seu próprio país.
Joaquim Pedro de Andrade morreu muito jovem, com apenas
56 anos, deixando o ambicioso projeto de uma versão cinematográfica de “Casa-Grande & Senzala” de Gilberto
Freyre restrita somente para a imaginação dos admiradores de seu trabalho. Entretanto,
em sua trajetória de adaptações literárias, o diretor ainda pôde se utilizar
dos escritos do poeta Tomás Antônio Gonzaga para contar a sua versão da
conspiração separatista da elite social mineira em “Os Inconfidentes” (1972), longa-metragem que acabou se tornando o
vencedor da primeira edição do Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de
Arte) na categoria de Melhor Filme, em 1973.
Contudo, os maiores reconhecimentos do trabalho de
Joaquim Pedro de Andrade vieram com as conquistas do Troféu Candango de Melhor
Filme no Festival de Brasília na sua 8a Edição, por “Guerra Conjugal” (1974), e na 14ª Edição, por “O Homem do Pau-Brasil” (1982); muito embora o seu já citado “O Padre e a Moça” (1966) tenha recebido
uma indicação ao Leão de Ouro do Festival Internacional de Cinema de Berlim; e “Macunaíma” (1969) tenha saído como o
grande vitorioso no tradicional Festival de Mar del Plata, na Argentina, anos antes.
Ainda cabe destacar que o forte veio documentarista
observado nos trabalhos de Joaquim Pedro de Andrade (principalmente em seus
curtas de início de carreira) amadureceram e foram responsáveis por registrar
belas e notórias preciosidades do nosso tradicional cinema documental, como e o
caso dos anteriores “Garrincha - A
Alegria do Povo” (1963), documento valoroso idealizado por Luiz Carlos
Barreto e Armando Nogueira sobre um de nossos maiores jogadores de futebol; “Cinema Novo” (1967), produção
alemã dirigida por Joaquim Pedro sobre
os seus colegas de movimento cinematográfico; e “Brasília, Contradições de uma Cidade Nova” (1968), sobre a recém-criada
capital do país que, embora planejada, enfrentava sérios problemas, como a
opressiva segregação social já em seus primeiros anos de vida.
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"Garrincha - Alegria do Povo" (1963) de Joaquim Pedro de Andrade Armando Nogueira Produções Cinematográficas [br] | Luiz Carlos Barreto Produções Cinematográficas [br] |
Ressaltamos que todos os filmes citados no artigo, bem
como os demais dirigidos por Joaquim Pedro de Andrade, estarão dentro do
programa de exibição elaborado pela Gerência do Cine Humberto Mauro para essa
próxima semana. E como atividade complementar, a Casa ainda oferece para o
público o curso “O Poeta da Palavra e da Imagem” ministrado pelo pesquisador, crítico e comentarista de cinema
Professor Ataídes Braga, do Centro Universitário UNA, de Belo Horizonte.
Oferecendo uma análise e uma leitura completa sobre a
obra de Joaquim Pedro de Andrade e a sua fundamental importância para a
História do Cinema Brasileiro, o curso terá carga horária total de cinco horas e
acontecerá nos dias 4 e 5 de agosto, com início sempre às 14:00. As inscrições
são gratuitas e devem ser feitas pelo e-mail: cursos.cinehumbertomauro@gmail.com
Maiores detalhes desta Mostra estão disponíveis no site
da Fundação Clóvis Salgado (fcs.mg.gov.br) ou podem ser acessadas diretamente
pelo link Mostra “Joaquim Pedro de Andrade - Integral”. Lembrando que a entrada é gratuita, mas é necessário
retirar os ingressos na bilheteria do cinema meia hora antes de cada sessão. O
Cine Humberto Mauro está localizado no Palácio das Artes, na Avenida Afonso
Pena 1537, centro de Belo Horizonte.
BOAS SESSÕES, BOM APRENDIZADO E BOM DIVERTIMENTO!
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