É notório e quase proverbial dizer que uma carreira
cinematográfica fundamentada por uma genialidade controversa é transparecida
pela forte personalidade de um dos artistas mais célebres do século XX. Se
estivesse vivo, o excêntrico Orson Welles teria completado os seus 100 anos nesta
última quarta-feira.
Ator, roteirista e produtor cultural, Orson Welles começou
no rádio e no teatro já somando um número incrível de experiências bem-sucedidas
que o qualificaram como um dos profissionais mais inovadores e requintados do
ramo. Canonizá-lo ou santificá-lo somente pelo vislumbro esmagador de sua
estreia como cineasta em “Cidadão Kane”
(1941); ou apenas pelo plano-sequência mais famoso da história do cinema que
abre o estupendo “A Marca da Maldade”
(1958); é um erro que dez entre dez pessoas comumente costumam cometer. O
diretor é muito, mas muito maior do que isto.
Atuando em quase todos os filmes que realizava, Welles
era preciso na conjugação de sua magistral direção com suas melancólicas interpretações
(geralmente nos papéis de protagonista). Apesar das intermináveis pressões
sofridas por estúdios pelos quais trabalhou ao longo de sua conturbada carreira
como realizador, ele ainda conseguia assumir relativo controle de seus
projetos, sempre colocando em evidência o quão funesta e calamitosa é a condição
do ser humano em sua concernida intolerância perante o mundo.
Nos filmes de Orson Welles, essas malfadadas tendências
malignas que nos acompanham desde os primórdios da humanidade podem ser
observadas no singular “Soberba”
(1942), no lúgubre “O Estranho”
(1946), no kafkiano “O Processo”
(1962) e no reflexivo “Verdades e
Mentiras” (1973), por exemplo. Essas invariáveis ainda são empregadas de
maneira sutil em “Macbeth - Reinado de
Sangue” e “Othello” (1952),
adaptações cinematográficas do cineasta para obras de William Shakespeare; e em
“Grilhões do Passado” (1955) que ressoa
a máxima da inocência perdida que já havíamos observado em “Cidadão Kane”.
Entretanto, as características multifacetadas deste astro
fizeram com que o seu trabalho como ator fosse valorizado e controversamente desejado
por muitos diretores e produtores de cinema ao longo de anos. E para comemorar
a data, o Rotina Cinemeira fará
diferente ao indicar na coluna “Três Assim” dessa semana três filmes onde
Welles, sob a batuta de outros grandes diretores, fez a diferença emprestando
todo o seu talento e aspereza para compor personagens sombrios inesquecíveis de
algumas das mais notáveis produções do cinema mundial.
Jane Eyre (Jane Eyre, Estados Unidos, 1943)
Direção: Robert
Stevenson
Órfã, desprezada pela família e após viver uma infância
duramente triste, Jane Eyre (Joan Fontaine) deixa o colégio onde estava internada
há alguns anos para trabalhar em uma misteriosa mansão como preceptora da
pequena Adele (Margaret O’Brien), filha de Edward Rochester (Orson Welles).
Jane e Edward acabam se apaixonando, mas ela descobre um terrível segredo que
Rochester guardava por muito tempo, justamente no dia em que iriam se casar. Como
consequência, tais revelações implicarão grandes dificuldades para a
continuidade do romance do casal.
Baseado no romance homônimo de Charlotte Brontë, o
roteiro adaptado por John Houseman, Aldous Huxley e do próprio Robert Stevenson
foi posteriormente vinculado como novela em 1946 no programa de rádio de Orson
Welles, o “The Mercury Summer Theatre on
the Air”. Welles repetiu o magnético papel de Rochester, enquanto a atriz
Alice Frost interpretou a sofrida Jane Eyre.
Sem que se estraguem as surpresas que o filme reserva,
cabe ressaltar que a direção de Stevenson é exuberante, embora uma passagem
curiosa mereça ser destacada. Durante o longa, há uma engenhosa cena de
incêndio, construída com contornos sombrios e atmosfera gótica. A concepção e direção
dessa famosa sequência são frequentemente atribuídas ao criativo Welles, mesmo
ele nunca tendo sido creditado como tal.
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Orson Welles ao lado de Joan Fontaine em "Jane Eyre" (1943) de Robert Stevensson Twentieth Century Fox Film Corporation [us] |
O Terceiro Homem (The Third Man, Reino Unido, 1949)
Direção: Carol Reed
O novelista americano Holly Martins (Joseph Cotten) viaja
para a sombria Viena do pós-guerra a convite do oportunista Harry Lime (Orson
Welles), um velho amigo que havia lhe prometido um emprego. Chegando à cidade,
Holly se depara com o funeral de Harry e é informado que o amigo morreu em
circunstâncias misteriosas. Impressionado com os fatos e determinado a
investigar o caso, o escritor descobre várias inconsistências nos relatos dos
companheiros de Lime e acaba se envolvendo em uma arrojada e perigosa rede de
intrigas.
No início da produção de “O Terceiro Homem”, era forte o desejo de Carol Reed para que James
Stewart e Orson Welles integrassem o elenco de protagonistas. Entretanto, um
embate com o produtor David O. Selznick, que tinha o direito de aprovação dos
nomes (e, inicialmente, preferia a dupla Joseph Cotten e Noel Coward para os papéis
principais), acabou atravancando o começo das filmagens.
Selznick garantiu o protagonismo para Cotten e ainda
emplacou Alida Valli na pele da bela e sedutora Anna Schmidt, mas acabou tendo
que engolir à seco e ceder as insistentes pressões do diretor britânico em
relação a Harry Lime. O resultado final é que, em uma aparição fantasmagórica na
metade da projeção do longa, Welles talvez interprete, aqui, o personagem mais
brilhante de sua carreira frente as câmeras.
Entre os anos de 1951 e 1952 o ator ainda estrelou uma
série de rádio onde voltou a dar vida ao astucioso Harry Lime. As tramas
capituladas narravam os acontecimentos anteriores aos do filme dirigido por Reed.
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Orson Welles em "The Third Man" (1949) de Carol Reed - Carol Reed's Production [gb] | London Film Productions [gb] |
O Homem que não Vendeu
sua Alma (A Man for all Seasons, Reino
Unido, 1966)
Direção: Fred Zinnemann
Vencedor de seis Oscars (incluindo melhor filme e melhor
direção) em 1967, “O Homem que não Vendeu
sua Alma” conta a história de Thomas More (Paul Scofield), um chanceler inglês
que, na primeira metade do século XVI, se envolveu em um complicado conluio envolvendo
o corrupto Rei Henrique VIII (Robert Shaw). More é obrigado pelo Rei a aprovar
o seu divórcio com a Rainha e realizar um novo casamento com a sua amante. Mesmo
se sentindo pressionado, ele acaba não concedendo ao monarca tal aprovação.
Católico fervoroso, Thomas More renuncia ao seu nobre título,
mas ainda se vê perseguido pelo soberano inglês, ficando extremamente dividido
entre a sua convicção religiosa e as obrigações com a realeza. Apático em
relação ao caso e mantendo um silêncio sepulcral, More provoca ainda mais a ira
do seu rei, o que acarreta uma batalha de poderes repleta de intrigas e manobras
políticas que irão comprometer o destino do Homem, da Igreja e do País.
Embora austera e intransigente, a posição de Thomas More é
admirável. Mesmo apologética, a figura que enxergamos no filme foi historicamente
determinante para os rumos da reforma religiosa no Reino Unido.
Cinematograficamente, More rendeu a Paul Scofield o Oscar de melhor ator (mais
uma das seis estatuetas do longa). Egresso do teatro, o ator britânico foi uma
escolha particular do diretor Fred Zinnemann que foi na contramão dos
produtores que queriam Alec Guinness para o papel principal.
Em meio a estes embustes que percorrem as fases de pré-produções
hollywoodianas encontramos Orson Welles, outra escolha do diretor para um papel
que, embora pequeno (o do Cardeal Thomas Wolsey), estava sendo preterido por
ninguém menos que Laurence Olivier. A sua aparição é curta, mas a interpretação
é incrivelmente soberba e, mesmo sendo a opção original de Zinnemann, o garboso
diretor diz ter dirigido a si próprio em suas poucas cenas.
Se a história é verdadeira ou se é simplesmente mais um
dos ataques de vaidade do diretor, isso ninguém nunca vai saber. O fato
realmente importante é que, por mais que as produções em que participou tenham
tido diretores ou produtores severamente comprometidos com os projetos, sempre
notaremos um toque da genialidade ou uma fração da excentricidade desse monstro
sagrado do cinema chamado Orson Welles!
![]() |
Orson Welles como o Cardeal Thomas Wolsey em "A Man for all Seasons" (1966) de Fred Zinnemann - Highland Films [gb] |
É ISSO... BOM FIM DE SEMANA E BOAS SESSÕES!
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