Com um percurso relativamente curto dentro do mundo das
artes, o cinema já foi capaz de produzir um número incontável de histórias que
habitam ou habitaram o imaginário de bilhões de pessoas que já passaram por
este planeta. Fascinante, hipnótico e monumental, esse mercado sempre despertou
um interesse particular naqueles que, um dia, foram fisgados pelo poder
magnético e reluzente de uma grande tela. A paixão é, de fato, instantânea.
Nesse encantador caminho sem volta, frequentemente nos
deparamos com obras que nos ajudam a conhecer e melhor compreender como foi
construída a charmosa, imponente e vasta memória filmográfica mundial e, ao
final de 2017, alguns dos títulos mais importantes de todos os tempos alcançarão
um patamar ainda maior nessa extraordinária trajetória: se tornarão filmes
centenários!
Sobrevivendo ao desgaste, à destruição ou ao mero
ostracismo, um conjunto de verdadeiras pérolas da sétima arte continuarão sendo
lembradas com carinho por críticos, cinéfilos e pelo público em geral; e pegando
carona nessa oportuna ideia de organizar retrospectivas, resolvemos escolher três
formidáveis trabalhos que, definitiva e literalmente, marcaram época desde os seus
lançamentos em 1917 e que, a partir de janeiro, iniciarão mais um capítulo de
sua – agora – carreira secular.
Para descobrir, relembrar e apreciar! Começamos a nossa
seleção com um curta singular que infelizmente não existe mais, mas representa o
embrião de um doloroso processo de afirmação do gênero que mais enfrentou
dificuldades para prosperar no Brasil:
O Kaiser (O Kaiser, Brasil, 1917)
Direção: Álvaro Marins,
o Seth
No ano em que o Cinema de Animação no Brasil também
completa 100 anos, nada mais justo do que prestar uma homenagem à obra que é
considerada a pedra fundadora desta fascinante arte no país. Marco embrionário
de uma história de resistência criativa, “O
Kaiser” foi um curta-metragem idealizado e dirigido pelo cartunista
fluminense Álvaro Marins, mais conhecido como Seth. Sobressaltando as antigas
vinhetas animadas que já eram apresentadas nos encerramentos dos cinejornais, o
filme acabou sendo o primeiro do ramo a ser produzido em caráter comercial no
país, pois visava alcançar o apelo popular e ainda estimular a formação de um
novo mercado consumidor.
“O Kaiser” teve a sua estreia no Rio de Janeiro
no dia 22 de janeiro de 1917, sendo exibido no tradicional Cine Pathé da
Cinelândia apenas três meses antes do Brasil declarar guerra à Alemanha e
iniciar a sua discreta participação na Primeira Guerra Mundial. A relação entre
o desenho e esse subsequente abalo diplomático é direta, afinal o curta fazia
uma crítica ácida e bem-humorada à soberania e ao expansionismo alemão. Nele, o
Imperador Guilherme II está sentado diante de um globo terrestre e vislumbra as
suas futuras anexações e potenciais conquistas. Para demonstrar toda a
autocracia, influência e poder, o monarca coloca o próprio capacete militar no
objeto que – por sua vez – ganha vida, passa a controlar a situação e acaba o
engolindo.
Pouco se sabe sobre os detalhes ou resquícios deixados
pelo roteiro original, mas sabemos que o projeto se mostrava audacioso e
revolucionário tanto em sua concepção quanto em seu desenvolvimento, pois era
sustentado por uma base narrativa linear que possuía começo, meio e fim.
Infelizmente, a cópia do filme foi uma das várias vítimas do tempo e se perdeu
por falta de acondicionamento e de preservação adequada, deixando como herança
apenas uma imagem de referência do trabalho pioneiro de Seth.
Em 2013, o documentário “Luz, Anima, Ação!” traçou um panorama histórico e evolutivo das
animações brasileiras ao longo das décadas, não só reconhecendo o esforço dos
principais nomes do setor, como também reverenciando o curta responsável por
dar o pontapé de partida que ajudou a construir essa belíssima trajetória
cinematográfica. O diretor Eduardo Calvet colheu o depoimento de várias
personalidades da área e ainda propôs um desafio interessante: utilizando
técnicas diferenciadas, oito desses profissionais foram convidados a a recriar
as sequências de “O Kaiser” a partir
daquele único fotograma existente.
E o RESULTADO
foi bastante surpreendente.
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"O Kaiser" (1917) de Álvaro Marins, o Seth - Ideograph [br] | Anima Mundi [br] |
Rica e Pobre (The Poor Little Rich Girl, Estados
Unidos, 1917)
Direção: Maurice
Tourneur
Herdeira de uma família tradicional, Gwendolyn é uma
criança solitária que tem tudo o que o dinheiro pode comprar. Cercada por uma
dezena de empregados intransigentes, ela divide uma gigantesca e luxuosa mansão
com os pais que, preocupados em somar cifras ou manter uma posição de destaque
dentro da alta sociedade, não conseguem oferecer aquilo que a filha mais
precisa: carinho e atenção. Esse é o típico mote de um conto moralista que
sempre busca reafirmar a tese de que o amor e o respeito valem muito mais do
que a aparência e os bens materiais.
A jornada de descobertas de ‘Gwen’ teria se tornado
bastante cansativa se não fossem as ideias e as mãos da renomada roteirista
Frances Marion, que transformou de maneira brilhante os textos da simplória peça
de Eleanor Gates, dando formas mais interessantes à obra que serviu de
inspiração para essa versão cinematográfica. O ato final é um espetáculo à
parte, pois revela um verdadeiro cenário de desengano. Após tomar uma dose
excessiva de medicamentos, a pobre menina rica passa a enxergar um mundo
imaginário inspirado nas coisas e nas pessoas que conhece; todas representadas
em uma sequência alucinante de delírios e sonhos surrealistas recheados de
metáforas sobre a vida e sobre uma consequente fuga da realidade.
“Rica e Pobre” tenta não pormenorizar os seus
ensinamentos e reflexões, mas se comporta como uma parábola conceitual sobre a
negligência familiar e suas implicações. O contorno sombrio que envolve essa
temática delicada é afervorado por cenas memoráveis que dão um toque exato de
diversão à trama e que remetem aos anuviados clássicos da literatura
infantojuvenil – como “Alice no País das
Maravilhas” e “O Mágico de Oz” –
que também já tiveram as suas adaptações para as telas, inclusive na sua fase
silenciosa.
Com uma estética refinada e uma narrativa envolvente, o
filme ainda foi um dos selecionados ao National Film Preservation Board em
1991, recebendo o selo “National Film
Registry” de proteção. O primor técnico do diretor francês Maurice Tourneur
ao criar algumas das suas ilusões são de uma preciosidade extremamente rara.
Porém, entendemos que uma de suas principais virtudes foi registrar o genuíno
talento de Mary Pickford, uma das estrelas mais expressivas do cinema mudo que,
com 24 anos de idade à época das filmagens, convence a todos no papel da
protagonista, uma garotinha de apenas 11 – sem sombra de dúvidas, está entre as
maiores interpretações da história.
![]() |
"The Poor Little Rich Girl" (1917) de Maurice Tourneur - Artcraft Pictures Corporation [us] |
Terje Vigen (Terje Vigen, Suécia, 1917)
Direção: Victor Sjöström
A originalidade elementar presente nos filmes atuados ou
dirigidos por Victor Sjöström traduzem, de maneira absoluta e grandiosa, a
extraordinária carreira daquele que foi o maior responsável por alavancar o
cinema sueco a um patamar mais elevado dentro do novo mercado de entretenimento
que ainda fazia curiosos experimentos ao redor do mundo. Suas incríveis
composições eram legítimas obras de arte, verdadeiras pinturas em movimento que
conseguiam captar as atitudes e os olhares mais sinceros dos seres humanos.
Essencialmente arrebatador, “Terje Vigen”
foi o primeiro de seus trabalhos a fazer carreira internacional – um belo
cartão de visitas para um competente e promissor artista.
Terje Vigen (interpretado pelo próprio Sjöström) é um
modesto pescador que vive em uma ilha localizada na rota comercial da costa sul
escandinava, integrando um trajeto bloqueado por navios do Império Britânico
durante a Guerra Finlandesa de 1809. A fim de buscar suprimentos para a sua
mulher e sua filha, ele acaba sendo capturado e preso na tentativa frustrada de
perfurar esta barreira. Após cinco longos anos, o marinheiro é libertado e se
depara com uma realidade ainda mais cruel do que a que tinha vivido. Recluso e
completamente infeliz, o pobre homem agora só pensa no desforço da retaliação, prometendo
destruir a vida de todos aqueles que lhe causaram tamanho sofrimento.
Baseada na famosa poesia narrativa do dramaturgo
norueguês Henrik Ibsen, a película registra e faz o resgate de manifestações
tão comuns e distintas como a compaixão, a humildade, o luto e a vingança,
atribuindo a elas o mesmo conceito especioso de nosso "sofismático" caráter. Os
efeitos da barbárie ferem profundamente a integridade de qualquer indivíduo e –
até mesmo quando este tem um repentino encontro com o inesperado – é possível
que os levem a cometer uma série de atrocidades descompassadas em nome de um
ódio incontido, de modo que a impetuosidade desses sentimentos fique
representada pelo ostensivo poderio imagético captado pelas câmeras.
Guardar na mente uma coleção de cenas memoráveis, e
absorver cada uma das complexas emoções dispostas em uma peça fílmica de
aproximadamente uma hora de duração, nos impulsiona a conhecer e admirar os
vários tipos de projetos audiovisuais executados ao longo das primeiras décadas
do século XX, sobretudo na sua linhagem mais clássica. Victor Sjöström é uma
das mentes mais brilhantes da história da sétima arte, pesando aqui a sua
notória contribuição e excelência na realização de uma infinidade de
obras-primas do sedutor cinema silencioso.
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"Terje Vigen" (1917) de Victor Sjöström - Svenska Biografteatern AB [se] |
Filmes que também
merecem destaque:
- O Imigrante (The
Immigrant, Estados Unidos, 1917) - de Charles Chaplin;
- O Balneário / Carlitos nas Termas (The Cure, Estados Unidos, 1917) - de Charles Chaplin;
- Wild and
Woolly (Wild and Woolly, Estados Unidos,
1917) - de John Emerson;
- O Esplêndido Amante (Alimony, Estados Unidos, 1917) - de Emmett J. Flynn;
- Coney Island
(Coney Island, Estados Unidos, 1917)
- de Roscoe ‘Fatty’ Arbuckle;
- Rebecca of
Sunnybrook Farm (Rebecca of Sunnybrook
Farm, Estados Unidos, 1917) - de Marshall Neilan;
- O Último Cartucho (Straight
Shooting, Estados Unidos, 1917) - de John Ford.
E acompanhem aqui as
listas de Filmes Centenários feitas pelo Rotina Cinematográfica em anos
anteriores:
É ISSO! ETERNOS CLÁSSICOS...
INCRÍVEIS LEMBRANÇAS!
BOAS SESSÕES!
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