Um épico atemporal de máxima grandeza que foi capaz de
reescrever alguns dos capítulos mais consolidados das cartilhas de cinema; um
audacioso recorte histórico que remonta aquele que talvez tenha sido o evento
mais curioso da vida de uma dos maiores mitos da cultura nordestina; uma
comédia extravagante, virtuosa e, na medida do possível, surpreendentemente picante;
uma teia de eventos rotineiros entrelaçados que misturam o erotismo e o
suspense em uma narrativa inquieta e absolutamente chocante; e o drama substancial
que é a marca uma geração de adolescentes incompreendidos que carregam dentro
de si o descontrole e as perturbações de suas angustiantes vivências.
Continuem acompanhando a retrospectiva especial que o Rotina
Cinematográfica vem realizando ao longo das últimas semanas. Nessa quarta
e última parte, apresentamos mais cinco importantes trabalhos produzidos e
lançados no – não tão longínquo – ano de 1997. Filmes essenciais que tentam
manter o fôlego e a vigorosidade completando os seus 20 anos em 2017 e que, se
ainda não estão, já deveriam estar nas estantes (ou nos HDs) de qualquer
cinéfilo.
Titanic (Titanic, Estados Unidos, 1997)
Direção: James Cameron
Magnético, poderoso e tocante, “Titanic” é aclamado por muitos como a obra mais singular do cinema
contemporâneo nas últimas duas décadas, pois é, reconhecidamente, um épico
atemporal de máxima grandeza que tem a capacidade de transcender todas as
críticas – negativas ou positivas – e reescrever alguns dos capítulos mais
consolidados do miraculoso e sistemático guia de evolução da sétima arte. Encantando
corações e levando um número incalculável de fãs a frequentarem, de forma
apaixonada e maciça, inúmeras salas de exibição em qualquer canto do planeta, o
título obteve um desempenho surpreendente e assombroso antes mesmo de completar
uma semana em cartaz. Essa é a marca essencial de um sucesso inigualável
vencedor de 11 Oscars.
A julgar pela qualidade técnica e pelo perfeccionismo do
diretor James Cameron (em um trabalho primoroso que dispensa apresentações),
todo o projeto reinventou as bases do entretenimento popular ao oferecer para o
público um espetáculo visual impactante que retratou a jornada emocional de
triunfo e tragédia que levaram o mais famoso dos transatlânticos a afundar após
se colidir com um iceberg em 1912. Apesar de simples, o enredo foi capaz de
fisgar o espectador com um fascinante e improvável caso de amor que se encaixou
perfeitamente dentro deste célebre acontecimento histórico. A imersão é
instantânea.
A bordo da viagem inaugural do faraônico e “inaufragável”
R.M.S. Titanic está Rose Dewitt Bukater (Kate Winslet), uma jovem aristocrata
britânica que, por força do acaso, acaba conhecendo o amável e aventureiro Jack
Dawson (Leonardo DiCaprio), um humilde artista que embarca nessa mesma viagem
com o sonho de recomeçar a vida com dignidade na América. Conduzido por um
“romance proibido”, os dramas dos personagens fictícios e reais se entrelaçam
diante do desespero que se manifesta após o malfadado desastre; enquanto alguns
presenciam as últimas horas de vida, outros lutam corajosamente pela
sobrevivência.
Dentro do ambicioso e lucrativo mercado cinematográfico
de Hollywood, “Titanic” foi a
primeira de uma lista de três superproduções a conseguir recolher mais de dois
bilhões de dólares em ingressos vendidos ao redor do mundo. Em valores
absolutos, o longa somou uma quantia correspondente a mais do que o dobro da
arrecadada por “Jurassic Park: O Parque
dos Dinossauros” (1993), filme que detinha o posto de mais rentável à
época. Esse estrondoso fenômeno se sustentou como a maior bilheteria da
história por longos doze anos, sendo superado apenas por “Avatar” (2009), também dirigido por Cameron – um mestre em
multiplicar dinheiro.
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"Titanic" (1997) de James Cameron - Twentieth Century Fox [us] | Paramount Pictures [us] | Lightstorm Entertainment [us] |
Baile Perfumado (Baile Perfumado, Brasil, 1997)
Direção: Paulo Caldas e
Lírio Ferreira
“Já foi-se o tempo do
fuzil papo amarelo...”
Extinto há quase oitenta anos, o abarroado e encantador fenômeno social do
cangaço deixou marcas importantes para a cultura nordestina, ajudando a
construir um segmento convulsivo essencial dentro da história política do
Brasil no século XX. Parte dessa atroz, incauta e sanguinária jornada dos
bandoleiros do sertão foi replicada pelos cinemas do mundo através de “Baile Perfumado” – audacioso
longa-metragem de ficção dirigido por Paulo Caldas e por Lírio Ferreira – que
remonta aquele que talvez tenha sido o capítulo mais curioso da mitológica vida
de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.
Guiada por uma linguagem experimental que flerta com o
tom alegórico, a narrativa se desenvolve com agilidade e é inteiramente
inspirada em fatos reais. Todos os eventos estão relacionados aos ambiciosos
planos de um comerciante libanês que investiu todos os seus recursos em uma
empreitada solitária; impávido, ele buscava fazer o primeiro registro
iconográfico de uma autêntica lenda viva. Por um intermédio benevolente de
Padre Cícero (Joffre Soares), o mascate Benjamin Abrahão Botto (Duda Mamberti)
consegue a esperada autorização para documentar as ações e os deslocamentos de
Lampião (Luiz Carlos Vasconcelos) e de seu temido bando.
Embalada pela trilha pulsante do manguebeat, uma atmosfera de temeridade recai sobre as personagens,
ficando bastante claro que tanto as relações de cumplicidade quanto as de
desconfiança estabelecidas entre Benjamim e os líderes do banditismo
caminhariam por uma estreita linha que separa a racionalidade da
compulsividade. As capturas fotográficas e as filmagens foram as únicas feitas
com Lampião ainda vivo e são, sem sombra de dúvidas, relíquias de valor
histórico inestimável. O vigoroso impacto das imagens vai além das palavras,
escancarando uma realidade cruel e romantizada que ficará para sempre marcada
na memória. Sem elas, a figura destemida do Rei do Cangaço existiria apenas
numa esfera fantasiosa.
Além de ser destacado como um dos principais filmes do
período da retomada, “Baile Perfumado”
ainda foi o grande responsável por iniciar a desanuviada aventura de
soerguimento do Cinema Pernambucano. Buscando renome na cena contemporânea,
profissionais corajosos caminhavam por uma desconhecida territorialidade
cultural naturalmente restabelecida pelas recentes produções de conteúdo
audiovisual no país. De maneira conveniente, o poder embrionário do respeitado
trabalho de Paulo Calas e Lírio Ferreira também foi capaz de engendrar uma nova
geração cineastas e roteiristas extremamente talentosos que fazem da
filmografia do estado uma das mais viscerais e pujantes dentro do atual
panorama cinematográfico nacional.
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"Baile Perfumado" (1997) de Paulo Caldas e Lírio Ferreira - Saci Filmes [br] |
Ou Tudo, ou Nada (The Full Monty, Reino Unido | Estados
Unidos, 1997)
Direção: Peter Cattaneo
A siderurgia está em declínio e as fábricas não param de
fechar as portas em Sheffield, cidade que em tempos mais promissores já chegou
a ser considerada o maior centro da indústria de aço na Inglaterra. O
contingenciável potencial que outrora possibilitava a criação de inúmeros
postos de atividade capacitada agora se mostra insuficiente para se
autossustentar.
Neste amargurado cenário de crise, Gaz (Robert Carlyle)
lidera um grupo de seis operários desempregados que, tomados pelo desespero,
decidem colocar em prática um plano mirabolante. Inspirados pelas atuações de
trupes performáticas profissionais como os The
Chippendales, os amigos resolvem promover, apenas por uma noite, um show de
striptease para as mulheres do bairro
onde vivem. Perdidos entre as mais diversas motivações, esses virtuosos e
humildes trabalhadores se unem em busca de um objetivo principal: arrecadar uma
boa quantidade de dinheiro. Na aparência, nenhum deles despertaria qualquer
interesse; todos são pouco ou nada charmosos e estão completamente fora de
todos os apregoados padrões de beleza.
Entretanto, para combater a falta de atributos físicos,
os corajosos dançarinos pretendem ultrapassar os limites da extravagância e
apimentar ainda mais o espetáculo ficando “nus
em pelo” (tradução mais próxima da expressão inglesa “the full monty”). A aposta é arriscada, até mesmo porque a total
inexperiência desses homens com a dança transforma os ensaios em uma atração à
parte. Maravilhados, presenciamos uma sucessão de situações engraçadas que
chegam a ultrapassar o cúmulo do ridículo; por outro lado, demonstramos
compaixão pelas angústias pessoais de cada personagem, além da perseverança
para vencer o obstáculo da timidez e superar o clima de ansiedade provocado
pelas pressões de um desafio. Esse é o equilíbrio perfeito entre o drama e a
comédia que sequer recorre ao escracho e à apelação – o resultado é atraente,
deleitável e extremamente honesto.
Dirigido pelo londrino Peter Cattaneo, “Ou Tudo, ou Nada” é um verdadeiro
clássico moderno do cinema britânico; produção pequena que foi capaz de se
tornar um dos maiores sucessos do ano e que guarda na sua essência simplista a
fórmula que cativou o mundo. A mistura de um humor agridoce, despretensioso e
refinado acabou gerando uma narrativa ligeira entremeada por subjetividades.
Apesar de seu estimável poder de entretenimento, o filme não deixa de fazer uma
severa crítica à austeridade na implementação das políticas neoliberais que,
por alguns pares de anos, tentavam combater a instabilidade econômica no Reino
Unido. Nesta quimera, a melancolia está nas entrelinhas.
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"The Full Monty" (1997) de Peter Cattaneo - Redwave Films [gb] | Channel Four Films [gb] | Twentieth Century Fox [us] |
Carne Trêmula (Carne Trémula, Espanha | França, 1997)
Direção: Pedro Almodóvar
Articulado, substancial e meticulosamente abusivo, o
cinema produzido por Pedro Almodóvar se apóia em características que, de
maneira ocasional, provocam indiferença entre os seus espectadores – uma vez
que o mesmo sempre recorre à premissa da trivialidade em suas composições.
Basicamente, ele lança os fatos na tela para só depois desenrolá-los em um
conjunto de múltiplas sensações que costumam deixar qualquer pessoa
completamente extasiada. Ao assistir “Carne
Trêmula”, percebemos que tal máxima é respeitada com plena devoção, pois
somos seduzidos por essa curiosa teia de eventos bem entrelaçados que misturam
o erotismo e o suspense em uma narrativa inquieta, picante e com humor na
medida certa.
Nos anos 70, enquanto tentava chegar na maternidade, uma
prostituta dá à luz dentro de um ônibus em uma praça de Madrid. O caso causou
tanta comoção que a prefeitura resolveu conceder à criança o acesso livre ao
transporte público da cidade de forma vitalícia, pois julgava que um menino que
nascera em condições tão inusitadas merecia ter um futuro vitorioso pela
frente. Entretanto, após vinte anos de viagens gratuitas, Víctor Plaza (Liberto
Rabal) ainda leva a vida como um humilde entregador de pizzas que, certa vez,
tem um encontro fortuito com Elena (Francesca Neri) e acaba se apaixonando
instantaneamente.
O destino nunca foi muito generoso com esse rapaz, e um
golpe de azar impediu que um relacionamento pudesse ser engatado entre eles. Já
no primeiro encontro, os dois se desentendem e a jovem, que era viciada e
estava sob o efeito de drogas, saca um revólver e instaura um inesperado e
inconsequente clima de tensão em seu apartamento; é quando um tiro acidental
acerta David (Javier Bardem), um dos policiais que havia chegado para averiguar
a ocorrência. Depois de passar um tempo na cadeia, Víctor continua pensando em
Elena e mal sabe o que encontrará quando for procurá-la novamente.
Os saltos temporais abruptos podem até dar um ar
novelesco à trama, mas são esses os principais trunfos de Almodóvar em “Carne Trêmula”. Particularmente neste filme, ele consegue
construir um arrebatador romance moderno através do exorável e sufocante tom
melodramático que passa a ser a sua marca registrada quando atinge – aqui – a
sua maturidade enquanto cineasta. Carregada de muita elegância e sensualidade, a
exploração das relações humanas é feita com extrema singularidade, de modo que
possamos acompanhar, sem sequer respirar, como os contornos desoladores de uma
rotina ignóbil começaram a delinear uma história surpreendentemente chocante.
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"Carne Trémula" (1997) de Pedro Almodóvar - Deseo, El [es] | CiBy 2000 [fr] | France 3 Cinéma [fr] |
Gênio Indomável (Good Will Hunting, Estados Unidos, 1997)
Direção: Gus Van Sant
Vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Original em 1998, “Gênio Indomável” é um filme
absolutamente brilhante, realista e cheio de alma. Esse drama virtuoso é a
marca de uma geração de adolescentes incompreendidos que continuam levando, no
fundo dos seus corações, o descontrole e as perturbações de suas angustiantes
vivências – uma bagagem totalmente carregada de sentimentalismo, porém
excessivamente “cascuda”. Escrita pelos ainda garotos Ben Affleck e Matt Damon,
a envolvente narrativa tece sobre a sucessão dos eventos uma camada densa,
melancólica e reflexiva pouco comum em projetos que tentam alcançar todos os
tipos de público.
Will Hunting (Matt Damon) é um jovem de personalidade
arguta e inconstante que trabalha como um humilde servente no tradicional MIT
(Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Exceto por sua ocupação, ele nunca
teve a oportunidade de frequentar uma universidade, muito embora possua uma
capacidade estupenda de memorizar fatos históricos importantes e de resolver
equações matemáticas com alto grau de complexidade; é quando o renomado
Professor Gerald Lambeau (Stellan Skarsgård) descobre o verdadeiro potencial do
rapaz e acaba vislumbrando um caminho promissor para a sua ciência. Apesar de
toda a genialidade, Hunting se transforma em um símbolo do desequilíbrio, pois
também guarda na mente um incômodo existencial que precisa ser domado.
Dentro do complexo mundo das interações, precisamos
sempre analisar os dilemas e as hesitações de um ser humano o mais perto
possível de sua famigerada realidade. Não por acaso, começamos a perceber que
todas as vezes em que apareceram as melhores chances na vida de Will, a
irresponsabilidade e a rebeldia costumeiramente prevaleceram. Perdido e rodeado
por intermináveis confusões que podem até mesmo resultar numa prisão, ele
encontra ajuda somente através do contato forçado com o psicanalista Sean
McGuire (Robin Williams), profissional respeitado que o faz compreender as
artimanhas do destino e encarar o presente de maneira mais leve.
Por sua destacada atuação em “Gênio Indomável”, Robin Williams foi premiado pela Academia na
categoria de Melhor Ator Coadjuvante. Como o terapeuta que ao mesmo tempo
admira e tenta decifrar os mistérios da cabeça de seu notável paciente, ele se
impõe com elegância frente a um papel que amarra todas as pontas da trama e,
tal qual o personagem principal, consegue superar diversos traumas percorrendo
os rastros da suavidade. Não há "canastrice" e nem "melodramaticidade", afinal a
destreza e a inventividade de Gus Van Sant permitem que a inteligência siga
predominante nessa inesquecível obra de arte.
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"Good Will Hunting" (1997) de Gus Van Sant - Be Gentlemen Limited Partnership Lawrence Bender Productions [us] | Miramax [us] |
Dessa forma, chegamos ao fim de mais uma retrospectiva –
uma jornada emocional e nostálgica que reacende e alimenta a nossa memória
cinematográfica. Caso queiram relembrar os filmes apresentados ao longo dessas
últimas quatro semanas, basta continuar navegando pela nossa página ou clicar
nos links correspondentes a cada uma das partes que seguem logo abaixo:
E para o próximo ano já garantimos que a retrospectiva “20
Filmes que completam 20 Anos em 2018” voltará com a mesma força, sempre
com a promessa de voltar a ser publicada seu período habitual: o mês de julho.
Voltaremos aos eixos! Até lá...
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