Uma jornada emotiva e fantasiosa que jamais abdica da
seriedade para expor as dolorosas consequências do Holocausto; um relato
autêntico e fascinante sobre pessoas que ingressam de maneira ambiciosa no
luxurioso ramo da indústria pornográfica; uma apaixonante história que capta a
verdadeira essência dos inocentes dilemas infantis através da relação de
companheirismo entre dois irmãos; um ousado e eletrizante filme de ação que
acabou se tornando febres dentro das videolocadoras brasileiras por alguns
meses após seu lançamento; e o perverso e obscuro drama que aborda de maneira
perigosa o uso da violência desproporcional e o caráter inescrupuloso da
misoginia.
Continuem acompanhando a retrospectiva especial que o Rotina Cinematográfica vem realizando ao longo destes últimos dias. Nessa terceira
parte, apresentamos mais cinco importantes trabalhos produzidos e lançados no
não tão longínquo ano de 1997. Filmes essenciais que tentam manter o fôlego e a
vigorosidade completando os seus 20 anos em 2017 e que – se ainda não estão –
já deveriam estar nas estantes (ou nos HDs) de qualquer cinéfilo.
A Vida é Bela (La Vita è Bella, Itália, 1997)
Direção: Roberto Benigni
Longe de ser unanimidade, “A Vida é Bela” se configura como uma experiência sensorial intensa
de extrema relevância dentro da história recente do cinema mundial. O quanto de
beleza persiste em cada revisão depende da singular relação de afetividade que
os espectadores possuem com a obra. Há quem não consiga conter as lágrimas
mergulhando nos dramas vividos pelas personagens; há também aqueles que criam
uma barreira de intolerância diante do trabalho do diretor e protagonista
Roberto Benigni, um elemento negativador que sempre ganha força e importância
na contramão dessa jornada emotiva. Seja farsesca, pessimista ou açucarada
demais, sua carismática narrativa se garante com uma essência popular e
duradoura.
Caminhando por uma linha fantasiosa sem jamais abdicar da
seriedade, o longa aborda com sutileza os momentos cruciais que antecederam a
eclosão da Segunda Guerra Mundial e vai ao encontro de Guido Orefice (Benigni),
um humilde contabilista judeu que faz de tudo para conquistar o coração de Dora
(Nicoletta Braschi), uma jovem comprometida com um burocrata fascista.
Posteriormente, nos transformamos em testemunhas fiéis da cumplicidade que
acabou aproximando os dois, bem como o casamento e o nascimento de Giosué
(Giorgio Cantarini), adorável fruto dessa união. A família vivia feliz até ser
surpreendida pelas forças de ocupação alemãs, momento em que oficiais surgem
para enviá-los a um campo de concentração.
Para proteger o filho da crueldade e dos perigos
torturantes do Holocausto, Guido usa a imaginação e se esforça para fazer com
que Giosué acredite que tudo não passa de um grande jogo onde os nazistas são
apenas juízes garantindo o cumprimento das regras. O objetivo é que cada
competidor some o maior número de pontos desempenhando uma série de
competências, dentre as quais estão a habilidade para se manter calado e o
talento para permanecer escondido pelo maior tempo possível. Como recompensa, o
vencedor levará um belo tanque blindado para a casa.
Lançado em dezembro de 1997 na Itália, “A Vida é Bela” enfrentou dificuldades
para se inscrever em alguns dos principais festivais do mundo como, por
exemplo, o Globo de Ouro. Entretanto, o filme venceu o Prêmio Especial do Júri
e foi nomeado à Palma de Ouro em Cannes no ano seguinte; além de ter uma
estreia comercial tardia nos Estados Unidos, possibilitando a sua indicação ao
Oscar na edição de 1999. Na ocasião, venceu nas categorias de Melhor Trilha
Sonora Original, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Ator para Roberto Benigni.
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"La Vita è Bella" (1997) de Roberto Benigni - Melampo Cinematografica [it] | Cecchi Gori Group Tiger Cinematografica [it] |
Boogie Nights: Prazer
sem Limites (Boogie Nights, Estados
Unidos, 1997)
Direção: Paul Thomas
Anderson
Gostar de prazeres “puramente simples” como passar
manteiga no traseiro ou colocar pirulitos na boca podem representar
preferências ora inocentes, ora pitorescas para aqueles que veem no sexo a sua
mais distinta forma de expressão. Medido por uma autenticidade criteriosa que
procura sempre se esquivar dos subterfúgios pautados pela futilidade, “Boogie Nights: Prazer sem Limites” se
destaca pela coragem de um jovem cineasta – à época com 27 anos de idade – que
estava lançando apenas o seu segundo longa-metragem. Desferindo um olhar
crítico, instigante e perturbador por cima dos bastidores da indústria
pornográfica, Paul Thomas Anderson faz um relato fascinante sobre pessoas que
ingressam de maneira ambiciosa neste ramo luxurioso. Trata-se, literalmente, de
um filme com culhões.
Ambientado na ardente e lasciva Califórnia dos anos 70, a
trama é conduzida pelo comportamento excêntrico e temperamental do veterano
diretor Jack Horner (Burt Reynolds) que, sempre atento aos novos talentos que
venham a surgir no mercado de entretenimento adulto, entra em contato com Eddie
Adams (Mark Wahlberg) a fim de transformá-lo no novo astro de suas produções.
Atraente, simpático e voluptuoso, o rapaz se mostra sexualmente inseguro no
início das filmagens, mas a alta concentração de hormônios e a substancial
ajuda de uma avantajada e peculiar ferramenta de trabalho contribuem de forma
direta na sua meteórica ascensão no meio.
Dentro dos limites estabelecidos pela subcultura
libertina deste tipo de cinema, Eddie acaba se tornando uma celebridade
instantânea e passa a adotar o nome de Dirk Diggler. Rapidamente, ele descobre
os caminhos mais curtos para alcançar o definitivo estrelato, bem como a
inquietude provocada por uma diversão genérica, permissível e contumaz. A
súbita fama pode cobrar um preço bastante elevado, trazendo a prostituição, o
consumo abusivo de drogas e a violência em suas mais variadas escalas como as
principais consequências de uma aventura sustentada pela fugacidade. Desejo,
necessidade, vontade e loucura – o monstruoso passo a passo de um deleitável
infortúnio.
Contando ainda com o talento proeminente de artistas como
Julianne Moore, John C. Reilly e Philip Seymour Hoffman – que ao longo dos anos
seriam constantes colaboradores de Paul Thomas Anderson – o projeto conquista o
público por sua excelência e originalidade. O roteiro é brilhante, convincente
e poderoso, com diálogos afiados e elementos narrativos únicos que demonstram
ampla sinceridade no contexto que pretende apresentar. Não há como não se
sentir excitado, afinal “Boogie Nights:
Prazer sem Limites” também representa um ataque certeiro ao conservadorismo
ocidental.
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"Boogie Nights" (1997) de Paul Thomas Anderson - New Line Cinema [us] Lawrence Gordon Productions [us] | Ghoulardi Film Company [us] |
Filhos do Paraíso (Bacheha-Ye Aseman, Irã, 1997)
Direção: Majid Majidi
Admirar a simplicidade do cinema iraniano e a sua
assombrosa competência em produzir trabalhos únicos e tão maravilhosos sempre
nos trouxeram uma sensação de ligeiro reconforto. “Filhos do Paraíso” é um belo exemplo disso, pois capta a
verdadeira essência dos inocentes dilemas infantis ao contar, de forma
apaixonante e singela, a relação de cumplicidade e devoção entre dois irmãos.
Com atuações marcantes dos atores mirins e uma direção discreta, porém
poderosa, o título surgiu como forte candidato em uma das disputas mais
acirradas da história na busca pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (correndo
por fora no confronto direto frente aos favoritos “A Vida é Bela” e “Central do
Brasil”).
Beneficiada pela elegância irretocável do cineasta Majid
Majidi, a composição poética do argumento reflete com sutileza a profunda
condição de pobreza que domina os subúrbios de Teerã, mas transfere o seu
principal foco narrativo para uma situação cotidiana circunstancial que
sustenta com excelência a base de uma obra de arte extremamente realista e
sincera. Enquanto voltava da escola para a casa, Ali (Amir Farrokh Hashemian),
um garoto de nove anos, acaba perdendo os sapatinhos recém-consertados de sua
irmã, Zahra (Bahare Seddiqi). Filhos de uma família humilde, os dois têm a
plena consciência de que os pais não terão dinheiro suficiente para comprar um
outro par.
Diante desse incômodo acontecimento, as crianças resolvem
não contar nada sobre o ocorrido e elaboram um plano engenhoso – e ligeiramente
desastrado – para compartilhar o único calçado que lhes resta ao longo dos
próximos dias. Enquanto Zahra usa os sapatos para ir às aulas de manhã, Ali os
utiliza no período da tarde, passando por uma série de desventuras tentando
encontrar a pessoa que ocasionalmente tenha tomado posse daquela velha peça
remendada. Quando se esgotam as alternativas, ele ainda vislumbra uma nova chance
de conseguir colocar um ponto final no já fatigante revezamento e decidindo
participar de uma pequena maratona contra outros meninos de sua idade, no qual
um dos prêmios mais importantes é um novo par de tênis.
A emocionante sequência da corrida é uma legítima epopeia
da dignidade humana. Além disso, as representações da agonia e do desespero
durante e após a prova são extraordinariamente inspiradoras e memoráveis,
ficando impossível para o espectador segurar o choro ao testemunhar uma
ansiedade (des)controlada no sofrido semblante de Ali; bem como ao absorver
alguns dos ensinamentos que abalam as estruturas do nosso lado mais fraternal e
sensível.
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"Bacheha-Ye Aseman" (1997) de Majid Majidi - The Institute for the Intellectual Development of Children & Young Adults |
A Outra Face (Face/Off, Estados Unidos, 1997)
Direção: John Woo
Puxando pela memória, é curioso lembrar o quanto foi
difícil assistir “A Outra Face” logo
após o mesmo ter saído de cartaz, pois o título havia se tornado uma das
maiores febres entre os sócios de videolocadoras do país por alguns meses.
Muitos comentavam sobre a autenticidade de um roteiro bem estruturado composto
por uma atmosfera sombria e guiado por um ritmo insano e completamente
acelerado; ousadia assaz incomum para qualquer grande filme de ação da época.
Certamente não estávamos diante de uma típica aventura explosiva, afinal ela
ainda se comportava como um eletrizante e sedutor drama psicológico.
Ao longo de seis anos, Sean Archer (John Travolta) viveu
amargurado e extremamente infeliz por conta da morte prematura do filho. Ele é
um inflexível, obstinado e respeitado agente do FBI que está monitorando os
passos de Castor Troy (Nicolas Cage), um temido terrorista procurado pela
justiça que vem projetando um ataque à bomba contra a cidade de Los Angeles.
Durante uma arrojada fuga de avião, o criminoso chega a ser encurralado pelos
investigadores, mas fica gravemente ferido após sofrer um terrível acidente que
acaba o deixando em estado de coma profundo.
Determinado a descobrir a sequência dos fatos que
desencadearão este plano ameaçador, Sean terá que se manter no encalço de
Pollux (Alessandro Nivola), irmão mais novo de Troy e única pessoa capaz
fornecer as coordenadas exatas do atentado. Para isso, ele precisa ser
submetido a uma cirurgia de transplante facial para assumir não só a
identidade, mas a aparência física de Castor. O problema é que, desperto da
letargia, o psicopata também passa a encarnar o seu perseguidor; e, como se não
bastasse, Troy é o principal responsável pela antiga dor que atormenta Archer,
que agora já não separa mais o que é trabalho e o que é vingança pessoal.
A trama de “A Outra
Face” não é tão desafiadora quanto parece, mas é extraordinariamente
elegante. Ela não funcionaria tão bem se não fossem as mãos do diretor John Woo
que, depois de construir uma carreira sólida no cinema em Hong Kong, vinha de
duas pequenas decepções em Hollywood. Mas não demorou muito para que ele
aperfeiçoasse seu compasso alucinado dentro da linha de produção ocidental e,
com o apoio de uma espantosa tecnologia, conseguisse criar um dos thrillers mais envolventes da década de
90; segredo que o levou a dirigir a primeira sequência de “Missão: Impossível” três anos depois.
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"Face/Off" (1997) de John Woo - Permut Presentations [us] | Touchstone Pictures [us] Paramount Pictures [us] | Douglas/Reuther Productions | WCG Entertainment Productions |
Na Companhia de Homens (In the Company of Men, Canadá | Estados
Unidos, 1997)
Direção: Neil LaBute
“Vamos machucar
alguém...” Segundo o
dramaturgo e roteirista estadunidense Neil LaBute, foi com essa aterradora
frase que ele começou a puxar o carcomido fio condutor para a composição da
peça “Na Companhia de Homens”,
escrita em 1992 e adaptada do palco para as telas cinco anos depois. Perverso e
obscuro, o texto aborda de maneira interessante o uso da violência
desproporcional que define o caráter expurgante e irresoluto da misoginia, bem
como a sua sobreposição em relação ao machismo. É o próprio LaBute quem conduz
a arrojada direção do longa – trabalho que ainda marcou a sua promissora
estreia como cineasta.
Chad (Aaron Eckhart) e Howard (Matt Malloy) são
executivos bem-sucedidos que estão em uma habitual viagem de negócios.
Relativamente distantes da sufocante rotina do mundo corporativo, os colegas
conseguem encontrar tempo para conversar sobre as suas recentes decepções
amorosas. Enquanto um deles sofre por enfrentar um doloroso processo de fim de
relacionamento, o outro declara abertamente o desprezo, a repulsa e o ódio que
nutre pelas pessoas do sexo oposto. A troca de experiências acaba despertando o
espírito vingativo desses homens que, partindo de imponderações, passam a
planejar um jogo cruel e egoísta que irá lesar uma vítima completamente
vulnerável.
O conluio arquitetado pelos dois tem como objetivo
seduzir, conquistar e abandonar a mesma mulher, de preferência aquela que seja
mais inocente, para que assim tenham a chance de arruinar para sempre a vida de
uma semelhante. De maneira ocasional, eles optam por escolher Christine (Stacy
Edwards), uma das secretárias da empresa que também está participando da
convenção. O que provoca mais choque é o fato da jovem ser surda e muda desde a
infância e estar piamente excitada e lisonjeada por ter dois companheiros de
profissão a cortejando. Tal inescrupulosidade irá se desenrolar para um embate
psicológico sem precedentes.
Absurdamente polêmica, a corajosa narrativa da trama
jamais tenta se afastar da realidade, mas se arrisca ao envolver o público como
partícipe desse embuste covarde, sempre sustentada por diálogos inteligentes e
hipnóticos – e aqui cabe até mesmo uma não recomendação. É necessário que o
espectador tome cuidado e que esteja afiado com o seu senso crítico pois, em
alguns momentos, as situações que são apresentadas diante dos nossos olhos não
parecem ser passíveis de interpretação, tornando “Na Companhia de Homens” um filme excessivamente perigoso. O ser
humano possui uma índole sacana e pode muito bem sair pelas ruas fazendo
bobagens.
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"In the Company of Men" (1997) de Neil LaBute Alliance Atlantis Communications [ca] | Fair and Square Productions [us] |
Para conhecer ou relembrar os filmes apresentados
anteriormente na nossa retrospectiva, basta acompanhar os artigos navegando
pela nossa página ou clicando nos links correspondentes, que seguem logo
abaixo:
E não deixem de conferir a conclusão de mais uma revisão
cinematográfica na próxima semana. Listaremos os últimos cinco filmes na Parte IV prometendo revelar mais algumas
incríveis produções!
Até lá...
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