Resumir a
carreira de uma lenda em um pequeno artigo de pouco mais de setecentas palavras
é um tanto diminuto para demonstrar, neste caso, tudo o que David Bowie
representou para um número incontável de fãs que se multiplicaram por todas
essas décadas em que ele esteve na ativa. Vítima de uma doença cruel e
implacável, o astro camaleônico e símbolo de toda uma geração da música nos
deixou no fim da noite deste último domingo, transformando drasticamente o
início da semana. Sim, teremos alguns dias tristes pela frente.
Gênio
absoluto e dono de uma carreira extraordinariamente impecável, Bowie era mais
do que inventivo, original e inovador. Sempre fugindo das obviedades, o
“multiartista” se lançou ainda muito jovem e conseguiu construir a sua jornada
de maneira sólida, visceral e eclética marcada, sobretudo, por uma extensa
bagagem musical dotada de uma propriedade intelectual absurda. Inspiradora e
influente, a vida e a obra de David Bowie são umas das mais representativas da
cultura pop mundial, capazes de continuarem produzindo por muitos anos os seus
efeitos mais atraentes e, ao mesmo tempo, mais desconcertantes; tanto que dentre
as tarefas mais difíceis, para qualquer um de nós, está a ousadia canastrona de
tentar dizer quais são os seus melhores discos ou as suas melhores músicas. É
pouco, mas basta dizer que estarão “sempre entre os melhores de sempre”.
Conhecido por
sua versatilidade e pela sua disposição natural para se reinventar, David Bowie
também foi bastante provocativo no cinema. Cercado de muitos adjetivos, ele
ainda conseguiu caminhar de forma inquietamente ativa por esse voluptuoso
terreno da sétima arte e ainda ser considerado um excepcional ator. Os seus personagens
densos, impactantes e profundos também serviram como catalisadores para as
constantes e abruptas mudanças de sua carreira, no geral. Para demonstrar o
quão grande foi a aventura de Bowie frente às câmeras, basta dizer que em seu
currículo somam-se parcerias com mestres como David Lynch, John Landis e Nicolas
Roeg, com o qual filmou “O Homem que Caiu
na Terra” (1976), uma obra-prima da ficção científica dos anos 70.
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David Bowie em "The Man who Fell to Earth" (1976) de Nicolas Roeg - British Lion Film Corporation [gb] | Cinema 5 |
Da
colaboração para outros três grandes cineastas, surgiram outros três memoráveis
trabalhos: com Tony Scott, veio o ícone cult do universo gótico “Fome de Viver” (1983) que, carregado de
esoterismo e misticismo, assume um caráter revisional para os filmes de vampiro
a partir do seu lançamento; com Nagisa Ôshima, o violento, vivaz e iconoclasta
drama de guerra “Furyo, em Nome da Honra”
(1988) que curiosamente é co-estrelado por outro ícone da música, o compositor
japonês Ryuichi Sakamoto; e com Martin Scorsese, interpretou Pôncio Pilatos
fugindo dos clichês e dando uma faceta excepcionalmente rara à figura do prefeito
provinciano da Judeia no genial e humanista “A
Última Tentação de Cristo” (1988).
David Bowie
também emprestou a sua pele (e a sua alma) para vestir personagens reais, como
o legendário artista pop Andy Warhol no longa “Basquiat - Traços de uma Vida” (1996) de Julian Schnabel; e o
físico e inventor Nikola Tesla no excepcional “O Grande Truque” (2006) de Christopher Nolan. Houveram ainda
aqueles filmes em que Bowie interpretou o próprio Bowie, seja vociferando as
canções da sua Trilogia de Berlim (“Low”,
“Heroes” e “Lodger”) no não menos esbravejante “Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída” (1981) de Uli
Edel; ou com aparições mais espirituosas nas comédias “Zoolander” (2001) de Ben Stiller, e na mais recente “High School Band” (2009) de Todd Graff.
Voltando ao
campo da música, só que agora associada ao cinema, é de fundamental importância
ressaltar o quanto as canções de David Bowie ecoaram pelas salas de projeção do
mundo ao longo de mais de cinquenta anos de sua história profissional. Entre as
trilhas sonoras originais, seu nome está creditado em mais de 450 filmes que
independem de gênero, país ou ano de produção. O músico ainda esteve à frente
das composições para o filme “C.R.A.Z.Y.
- Loucos de Amor” (2005) de Jean-Marc Vallée (que conta com uma cena
antológica do ator Marc-André Grondin dublando “Space Oddity”); e diretamente envolvido na produção musical de “Labirinto - A Magia do Tempo” (1986) de
Jim Henson, filme que Bowie também estrela ao lado de Jennifer Connelly e que
ainda nos brinda com sequências de números performáticos inesquecíveis. As
canções de Bowie são, sem dúvida, um patrimônio universal! (Bem como as suas
valiosas contribuições para o Cinema...)
Para
finalizar, declaro que o texto foi escrito embalado pelo álbum “Blackstar”, seu excelente último
trabalho que, até esta manhã, ainda era inédito para os meus ouvidos.
Grandiosa maneira de se despedir! Que agora, descanse em
paz... (1947 - 2016)
Dez filmes com David
Bowie que indico (em ordem de predileção):
01 - O Homem que Caiu na
Terra (The Man who Fell to Earth,
Reino Unido, 1976) - de Nicolas Roeg
02 - Furyo, em Nome da
Honra (Merry Christmas Mr. Lawrence, Reino
Unido | Japão | Nova Zelândia, 1983) - de Nagisa Ôshima
03 - A Última Tentação de Cristo (The Last Temptation of Christ, Estados Unidos | Canadá, 1988) - de Martin
Scorsese
04 - Fome de Viver (The
Hunger, Reino Unido | Estados Unidos, 1983) - de Tony Scott
05 - O Grande Truque (The
Prestige, Estados Unidos | Reino Unido, 2006) - de Christopher Nolan
06 - Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer (Twin Peaks: Fire Walk with Me, França |
Estados Unidos, 1992) - de David Lynch
07 - Labirinto - A Magia do Tempo (Labyrinth, Reino Unido | Estados Unidos, 1986) - de Jim Henson
08 - Romance por Interesse (The Linguini Incident, Estados Unidos, 1991) - de Richard Shepard
09 - Basquiat - Traços de uma Vida (Basquiat, Estados Unidos, 1996) - de Julian Schnabel
10 - Apenas um Gigolô (Schöner Gigolo, armer Gigolo, Alemanha Ocidental, 1978) - de David
Hemmings
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David Bowie em "Merry Christmas Mr. Lawrence" (1983) de Nagisa Ôshima Recorded Picture Company (RPC) [gb] | National Film Trustees |
PS: Iria
começar uma revisão de todos os filmes da série “Rocky” para me preparar para “Creed:
Nascido para Lutar”, mas a partida de David Bowie me obrigará a rever o documentário
“Ziggy Stardust and the Spiders From
Mars” (1973) de D. A. Pennebaker. Com toda certeza, o filme vai furar a
fila esta noite...
Fica aqui a
dica para a sessão de hoje! ;-)
MUITO BOM SEU ARTIGO, PARABÉNS
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