O brilho espontâneo e timidamente desajeitado de Édith
Piaf iluminou de maneira muito breve os palcos pelos quais ela se apresentou,
mas, enquanto viveu, a singeleza traduzida pela sua voz cumpriu com primor e
requinte a missão tragicamente bela de cantar a vida! Mundialmente celebrada,
uma das artistas francesas mais representativas do século XX estaria
completando 100 anos no dia de hoje.
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Édith Piaf (1915 - 1963) - Divulgação Lipnitzki/Roger Viollet/Getty |
Expressiva intérprete da chanson française, Piaf era genuinamente uma estrela da música, mas
o vicejo irradiante das notas cantadas por ela ainda são capazes de conquistar
quaisquer ouvidos, leigos ou não, como também arrebatar todos os corações
tocados por suas incríveis performances (neste último caso, não é preciso ser
um exímio conhecedor das artes para se apaixonar por Édith). Não é à toa que,
frequentemente, o Cinema toma emprestado grande parte do seu talento e da sua
genialidade para engrandecer uma série de filmes; sejam elas pequenas ou megaproduções;
blockbusters ou filmes de arte;
dramas extremamente densos, comédias escrachadas ou, até mesmo, explosivos filmes
de ação.
Exemplo disso é que, creditado apenas em trilhas sonoras,
o nome de Édith Piaf aparece em mais de uma centena de títulos, onde algumas de
suas outras centenas de músicas acabam embalando muitas das cenas mais famosas
da história do cinema, ou então acabam dando o tom e o ritmo perfeitos para
todo o enredo de um trabalho cinematográfico. “L’Hymne à L’Amour” (em português, “O Hino ao Amor”), uma de suas canções mais belas, foi a escolhida
para batizar a tradução brasileira do filme sobre a sua vida, “Piaf: Um Hino ao Amor” (2007) de
Olivier Dahan, do qual falaremos logo mais.
“La Vie en Rose”, um dos primeiros e maiores sucessos
de Piaf, além de dar nome à tradução do título nos Estados Unidos para a cinebiografia
anteriormente citada, dulcifica a trilha de dramas completamente distintos como
“Sabrina” (1995) de Sydney Pollack
(bem como a versão de 1954, de Billy Wilder); “O Verão de Sam” (1999) de Spike Lee; e “O Americano Tranquilo” (2002) de Phillip Noyce; a canção também está
presente de forma graciosa na animação da Pixar “Wall-E” (2008) de Andrew Stanton; e até mesmo no alucinante “X-Men: Primeira Classe” (2011) de
Matthew Vaughn.
Já o clássico “Non,
Je ne Regrette Rien” aparece tanto em “Babe,
o Porquinho Atrapalhado na Cidade” (1998) de George Miller, com absurda
leveza, quanto em “Os Sonhadores”
(2003) de Bernardo Bertolucci, de forma vociferante e revolucionária; há quem
lembre ainda que a música ecoa como o despertador de sonhos em “A Origem” (2010) de Christopher Nolan.
Piaf era completa, o seu talento era um deslumbre, e a sua obra se fez
universal!
Entretanto, a sua contribuição para o Cinema vai muito
além das canções incluídas em trilhas sonoras. Aproveitando a data em que se
comemora o centenário de nascimento de Édith Piaf, o Rotina Cinemeira ainda
selecionou mais quatro excelentes filmes para os seus leitores: dois em que La Môme brilha como atriz, e outros dois
em que ela permite que os outros também brilhem por ela, retratando as suas
efemérides em cinebiografias emocionantes e imperdíveis!
Confira a nossa seleção:
Estrela sem Luz (Étoile sans Lumière, França, 1946)
Direção: Marcel Blistène
Édith Piaf cantava pelas ruas de Paris desde a sua
batalhada e sofrida adolescência, mas foi lançar seu primeiro álbum somente no
ano de 1936, aos 21 anos. O sucesso imediato permitiu com que ela também se
aventurasse por musicais e peças teatrais nas famosas casas de shows do bairro Montparnasse,
atuando como uma verdadeira vedete dos shows de variedades, observado o grande
dom que também tinha para a interpretação. Durante os anos 40, Édith se
arriscou como atriz de cinema, participando de poucas e pequenas produções como
protagonista, das quais destacaram-se “Montmartre
sur Seine” (1941) de Georges Lacombe (sua estreia nas telas) e “Neuf Garçons, un Coeur” (1948) de
Georges Friedland.
Entretanto, o seu trabalho mais conhecido é “Estrela sem Luz”, no qual interpreta a
ingênua Madeleine, uma jovem provinciana dona de uma voz fabulosa que viaja
para Paris depois de ser contratada pelo famoso empresário Roger Marney (Marcel
Herrand). Madeleine chega à cidade para dublar Stella Dora (Mila Parély), uma
estrela do cinema mudo de voz desagradável que teme pelo fim de sua carreira com
a chegada do cinema falado em 1929.
Os filmes de Stella, claro, continuam sendo um sucesso, e
Madeleine sequer é convidada para a grande estreia; mas, com a ajuda do
namorado Pierre (Yves Montand) e do engenheiro de som Gaston (Serge Reggiani),
a jovem resolve que não ficará à sombra do brilho da atriz que ela aceitou “doar”
o seu talento. Apesar de sempre compararem este filme ao clássico “Cantando na Chuva” (1952) de Stanley
Donen de Gene Kelly, vale sempre lembrar que o musical francês precede o
hollywoodiano em seis anos.
Piaf voltou a estrelar mais um longa no final da década
de 50, “Les Amants de Demain” (1959)
também dirigido por Marcel Blistène, mas sem grande sucesso. Abaixo, segue um
trecho de “Estrela sem Luz”, onde Édith
Piaf contracena com um jovem, e ainda novato, Yves Montand.
French Cancan (French Cancan, França | Itália, 1954)
Direção: Jean Renoir
Delicado, colorido e absurdamente alegre, “French Cancan” é uma celebração às
tradições mais apaixonantes da França, e tem tudo que um bom filme merece! Para
começar, é dirigido pelo fabuloso Jean Renoir que, após uma década de pungentes
e laboriosos projetos em Hollywood, retorna à sua terra natal para reatar os
laços com o realismo poético que sempre foi a marca do seu cinema na fase francesa
dos anos 20 e 30. O filme ainda é estrelado pelo icônico Jean Gabin, que
interpreta o dono de um decadente café no bairro boêmio de Montmartre e que tem
a brilhante ideia de repopularizar o Cancan como forma de reerguer os negócios
no ramo do entretenimento, que passavam por uma crise no final do século XIX. Os
palpitantes espetáculos da casa representam, de maneira simbólica, a fase
embrionária da fundação do Moulin Rouge, o cabaré mais famoso das tradicionais
noites parisienses.
Édith Piaf é peça fundamental na composição dessa
alegoria, e não está propriamente como uma atriz em “French Cancan”, mas participa de um dos momentos mais sublimes do
filme. Em um dos trechos, vários números musicais são apresentados no café de
Henri Danglar (personagem de Gabin), e são cantados por nomes consagrados como
os de Patachou, André Claveau, Jean Raymon, Cora Vaucaire e, claro, Piaf (personificando
a cantora Eugénie Buffet). Mesmo aparecendo por cerca de 50 segundos, ela rouba
a cena e encanta a todos, como sempre! Além de reverenciar a dança, “French Cancan” também é uma ode à
música francesa e aos seus maiores ídolos!
Édith e Marcel (Édith et Marcel, França, 1983)
Direção: Claude Lelouch
Claude Lelouch sempre foi um cineasta muito talentoso.
Exímio escritor e poeta, o diretor também sabe envolver os seus espectadores enquanto
trabalha com uma câmera na mão, compondo as suas mise-en-scènes de uma forma deleitável e extremamente particular. A
sua mente criativa e o seu comportamento sóbrio permitiram-lhe desenvolver um
método peculiar de dirigir os atores, deixando-os mais espontâneos, verdadeiros
e convincentes possíveis. Por essas e por outras qualidades, Lelouch foi o
escolhido para filmar a primeira adaptação da história da vida Édith Piaf para
os cinemas, no ano de 1983, passados 20 anos da sua morte.
Na verdade, o filme não é propriamente uma cinebiografia
de Piaf. Ele acompanha não só a conturbada trajetória de uma das artistas mais
populares do mundo, como também a carreira de um dos maiores atletas europeus
da história: Marcel Cerdan, boxeador francês de origem argelina e amante de
Édith Piaf. Os dois se conheceram em 1948, ano em que a cantora retornava de
uma grandiosa turnê nos Estados Unidos. Pouco tempo depois, Marcel (que, na
época, era casado) tornou-se campeão mundial de boxe. Entre luxuosas suítes de
hotel em Nova York e voos transatlânticos para Paris, o tórrido romance entre
duas das figuras públicas mais emblemáticas da França foi intenso e
meteoricamente curto, até a trágica morte de Marcel no final do ano de 1949.
Marcel Cerdan (que no longa é interpretado pelo próprio
filho, Marcel Cerdan Jr.) foi o grande amor da vida de Piaf que, mesmo tendo aguentado
todos os tipos de sofrimento, nunca conseguiu se recuperar das consequências
deste acidente; um baque que iniciou o seu definhamento, marcado por outras inúmeras
desilusões amorosas e o pelo seu vício descontrolado em mofina (que aliviava as
dores de uma artrite diagnosticada precocemente).
Em suma, “Édith e
Marcel” é um filme raro, mas que deve ser buscado e apreciado por todos!
Piaf: Um Hino ao Amor (La Môme, França | Reino Unido |
República Checa, 2007)
Direção: Olivier Dahan
O sofrimento causado pela perda de Marcel foi apenas mais
uma dolorosa página dos capítulos e mais capítulos de um substancial registro
das histórias de vida de Édith Piaf. Histórias essas que são contadas de
maneira primorosa naquela que talvez seja a cinebiografia definitiva da frágil
(e impulsiva) mulher que é considerada a maior estrela da música francesa de
todos os tempos. O diretor Olivier Dahan conseguiu compor entre luzes, sombras,
sorrisos e, principalmente, lágrimas, um retrato extremamente humano, garboso e
empático da figura fascinante que foi La
Môme.
“Piaf: Um Hino ao Amor” é uma composição mais do que íntima, é
um romance passional de intensa carga dramática que acompanha os primeiros passos
da menina tímida que nasceu no acanhado bairro parisiense de Belleville e que foi
capaz de romper as barreiras da Europa e de todo o mundo com uma voz singular e
coruscante. A infância difícil marcada pelos recorrentes abandonos dos pais, os
maus tratos da avó, e até mesmo uma cegueira temporária causada por uma
queratite estão todas presentes nas sequências iniciais do filme; sobre os
dramas da vida adulta e as passagens da carreira artística, nem é preciso falar
muito: a perda de sua única filha, o início difícil na profissão, a ascensão
inesperada, bem como todos os reveses profissionais e amorosos são descritos de
maneira apaixonada, sempre embalados por grande parte das músicas de seu inesquecível
repertório.
Vale muito salientar que todo o sucesso desta distinta
realização é ainda mais grandioso por conta da soberba interpretação de Marion
Cotillard como La Momê. Carregada de muita
emoção e totalmente entregue aos dramas de Édith Piaf, a atriz se transformou
na tela. Como resultado, temos aqui, uma das maiores atuações femininas no
cinema não só dos últimos anos, como também uma das melhores de todos os
tempos. Pelo papel, Marion recebeu inúmeros prêmios como o BAFTA, o Globo de
Ouro e o Oscar de melhor atriz e ainda conseguiu concretizar a tremenda façanha
de engrandecer ainda mais uma lenda!
Mítica e imortal, Édith Piaf ainda segue vibrante!
Melancolia e, sobretudo, luz! Que a memória e o legado
musical de Édith Piaf sejam preservados por muitos séculos!
PS: O vídeo de “L’Hymne
à L”Amour” é fragmento da comédia musical “Paris Chante Toujours!” (1951) de Pierre Montazel.
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