sábado, 25 de novembro de 2017

20 Filmes que completam 20 Anos em 2017 | Parte II

Um exercício de reflexão acerca da angustiante relação do ser humano com a vida e com a morte; um projeto instigante com o peculiar sabor de perversidade que tenta promover uma discussão severa sobre o poder destrutivo da imprensa; uma representação nostálgica e pessimista dos mais sensíveis dilemas pessoais e das consequentes incertezas em relação ao amor; a formidável biografia de um lendário agente do FBI que chegou de forma um pouco tardia às telas; e um dos filmes mais cruéis e sufocantes sobre as trágicas consequências de um desmedrado e insólito convívio em sociedade.

Continuem acompanhando a retrospectiva especial que o Rotina Cinematográfica vem realizando ao longo destes últimos dias. Apresentamos agora mais cinco importantes trabalhos produzidos e lançados no não tão longínquo  ano de 1997. Filmes essenciais que tentam manter o fôlego e a vigorosidade completando os seus 20 anos em 2017 e que – se ainda não estão – já deveriam estar nas estantes (ou nos HDs) de qualquer cinéfilo.

Gosto de Cereja (Ta’m e Guilass, Irã | França, 1997)

Direção: Abbas Kiarostami

Grande vencedor da Palma de Ouro na 50ª Edição do Festival de Cannes – dividindo o prêmio com “A Enguia” (1997) do diretor japonês Shôhei Imamura – “Gosto de Cereja” é um maravilhoso exercício de reflexão pautado na força provocativa de seus diálogos e no poder inebriante de suas imagens. Contornado por características ora despojadas, ora minimalistas, o filme se sustenta numa plataforma vigorosa de belas argumentações ao traçar uma linha filosófica rígida e sóbria por cima da angustiante relação dos seres humanos com a vida e com a morte.

Absorta, a câmera de Abbas Kiarostami acompanha a amargurada trajetória de Senhor Badii (Homayoun Ershadi), um homem de meia-idade que percorre os empoados arredores suburbanos de Teerã em busca de qualquer pessoa que entre no seu carro e ouça uma proposta extremamente peculiar. Ele deseja cometer suicídio e, caso este plano seja executado com sucesso, pretende oferecer uma generosa recompensa em dinheiro para quem puder enterrá-lo sob a sombra de uma frondosa cerejeira. Em meio a uma perdurável atmosfera de desespero, o protagonista se encontra com alguns de seus prováveis assistentes, dentre eles um soldado curdo, um seminarista afegão e um taxidermista turco.

Há quem aceite pegar uma carona com Badii, testemunhar as suas plausíveis divagações e ao menos escutar o curioso pedido deste suicida em potencial. Por uma série motivos (sejam eles de cunho moral ou religioso), a maioria desses homens vai recusando o inconveniente serviço até que um deles finalmente decide ajudá-lo. Em momento algum o espectador fica conhecendo as reais motivações que fizeram esse senhor escolher a opção de tirar a própria vida, mas as dúvidas se tornam praticamente irrelevantes quando descobrimos que a principal virtude da trama está na altivez dos encontros. Trabalhando sem um roteiro previamente estruturado, Kiarostami constrói a sua narrativa baseado no inesperado e nas eventualidades originadas por uma relação direta com e entre os atores, em sua maioria amadores.

Dotado de uma ambiguidade polivalente e inconclusiva, o decorrer das ações dentro do longa não disfarça o seu tom indagativo e racional se transformando, de maneira instantânea, em uma das peças cinematográficas mais controversas e ousadas do cinema iraniano de vanguarda, que atingiu o seu ápice de inventividade durante a década de 90. Contemplativo, engenhoso, sereno e fundamentalmente simples, “Gosto de Cereja” é um legítimo estudo de emoções que procura valorizar a nossa vivência enquanto buscamos respostas para os mistérios da existência e da efemeridade.

"Ta'm e Guilass" (1997) de Abbas Kiarostami - Abbas Kiarostami Productions | CiBy 2000 [fr] | Kanoon [ir]

O Quarto Poder (Mad City, Estados Unidos, 1997)

Direção: Costa-Gavras

Título obrigatório para estudantes e profissionais de comunicação ou jornalismo, “O Quarto Poder” também é um prato cheio para todas aquelas pessoas que gostam de filmes instigantes, provocativos e deliciosamente perversos. Centrado nas discussões sobre o papel e as influências que a mídia exerce nas mais variadas camadas da sociedade, o longa do diretor grego Costa-Gavras descreve, com uma perspicácia incisiva e direta, o poder destrutivo da imprensa e a sua força irrefragável perante o helênico princípio da trias politica, bem como a esmagadora capacidade manipulativa junto a formação do comportamento e da consciência popular.

Com uma carreira respeitada dentro de uma grande rede de televisão da Califórnia, Brackett (Dustin Hoffman) é um repórter investigativo experiente que enfrenta uma crise de identidade profissional pautada pela rotina monótona e pela subserviência forçada aos chefes. Perdendo espaço dentro da redação, ele passa a trabalhar à frente das equipes que realizam transmissões externas. Durante uma cobertura sem importância dentro de um museu de história natural da cidade de Madeline, o jornalista se depara com uma situação peculiar que poderá mudar o curso do seu dia: o ex-segurança Sam (John Travolta) faz uma visita inoportuna à supervisão para pedir seu emprego de volta, pois acha que foi demitido injustamente.

Entretanto, alguns detalhes lastimáveis geram um clima de tensão inesperado. A negociação não é nada amistosa, pois o vigilante ameaça a diretora da instituição com uma espingarda e, para complicar ainda mais, um grupo de crianças fazia uma visita guiada no momento do desentendimento. Por fim, um tiro acidental desencadeia uma tragédia anunciada, fazendo com que Brackett decida aproveitar essa chance para tentar fazer uma cobertura exclusiva do caso e retornar à fama com um espetacular furo de reportagem. Rapidamente, o evento toma proporções gigantescas e a produção inverídica e megalomaníaca de fatos começa a sair do controle, afinal os altos índices de audiência são mais importantes que verdades mal contadas.

Uma antiga máxima diz que cineastas consagrados costumam decepcionar pelas incursões em Hollywood, fazendo com que alguns críticos declarem que Costa-Gavras não está em plena forma na condução de “O Quarto Poder”, pois cai na artimanha do exagero e da previsibilidade ao abordar um tema tão audacioso como o sensacionalismo barato. Todavia, na contramão do desapontamento está o currículo de um diretor que é fonte de inspiração quando o assunto é cinema político e detentor de uma potência intelectual que jamais deve ser desprezada.

"Mad City" (1997) de Costa-Gavras - Warner Bros. [us] | Arnold Kopelson Productions | Punch Productions [us]

Felizes Juntos (Chun Gwong Cha Sit, Hong Kong | Japão | Coreia do Sul, 1997)

Direção: Wong Kar-Wai

“Todo solitário é igual...” Essa é uma constatação angustiante e genuína, pois define um compassivo cenário de melancolia que alcança uma dimensão emocional sucumbente, sobretudo quando está presente em um filme que carrega, na sua mais profunda intimidade, uma abordagem honesta e invulgar acerca do amor. É raro presenciarmos uma discussão proeminente sobre os turbulentos dilemas pessoais do ser humano, que sempre indagam quais são as possibilidades de dois opostos conseguirem alcançar a felicidade em conjunto. Em “Felizes Juntos” conseguimos encontrar algumas respostas para esses questionamentos, observando o quanto a alegria e a paz podem ou não preencher o relacionamento de um casal.

Lai Yiu-Fai (Tony Leung) e Ho Po-Wing (Leslie Cheung) são namorados e decidem fazer uma viagem fortuita à Argentina. Os dois acabam ficando sem dinheiro e, com isso, precisam ficar em Buenos Aires por mais tempo do que haviam planejado. Com o passar dos dias, os parceiros descobrem que as suas vidas se afastam em direções absolutamente contrárias. Enquanto um começa a trabalhar, planejando retornar o mais breve possível para Hong Kong, o outro se afunda em uma sórdida degradação moral e psicológica.

A ambientação nostálgica e pessimista – representada e captada pelas lentes magnéticas do diretor Wong Kar-Wai – ajuda a escancarar a verdadeira desilusão de um isolamento provocado não pelas ações, mas simplesmente pelas dolorosas circunstâncias do destino. De maneira gradativa, o apego, a confiança e a estima que um tinha pelo outro vai desmoronando, ao passo que um jogo aflitivo que mistura compaixão e infidelidade vai sendo praticado inconscientemente por ambos. Coberto de incertezas, o caos instaurado pelo conflito talvez venha para ressignificar uma esperança.

Vencedor do Prêmio de Melhor Direção do Festival de Cannes em 1997, Kar-Wai também é responsável pelo impecável roteiro de “Felizes Juntos”, uma narrativa ácida, cruel e irônica que retrata com uma intensidade descomunal o panorama depressivo da lógica social fundamentada pela aceitação e pelo convívio com alteridade. O particular dinamismo estético do cineasta ainda pontua, com muita sutileza, o desenvolvimento de outras temáticas como o culturalismo, a política e a sexualidade, que se encaixam com perfeição no elemento central do enredo: a solidão, uma questão abordada em praticamente todos os seus trabalhos. Inclusive, o fato da relação apresentada ser homoafetiva é apenas mais um mero detalhe de um incrível conto amoroso, pois é tratado de forma natural e não provoca nenhum estranhamento que gere eventuais e infelizes abnegações ou hostilidades.

"Chun Gwong Cha Sit" (1997) de Wong Kar-Wai - Block 2 Pictures [hk]
Jet Tone Production [hk] | Prénom H Co. Ltd. [jp] | Seowoo Film Company [kr]

Donnie Brasco (Donnie Brasco, Estados Unidos, 1997)

Direção: Mike Newell

É curioso pensar que um ótimo filme de máfia, que conseguiu reunir astros do calibre de Al Pacino e Johnny Depp, tenha tido uma baixa receptividade à época de seu lançamento e que continue sendo tão pouco conhecido pelo público de maneira geral. Acomodado ao acaso numa espécie de limbo cinematográfico, “Donnie Brasco” carecia de pujança ao longo de seu processo de concepção, justamente pelo fato de abordar uma temática repetitiva e saturada para um gênero que obteve grande destaque no cinema em décadas anteriores. Apesar do desempenho surpreendentemente acanhado, o projeto mostra a sua força com uma trama audaciosa conduzida com absoluta excelência, não por acaso veio a receber uma indicação ao Oscar na categoria de Melhor Roteiro Adaptado.

Baseado em fatos reais, o longa acompanha os passos de Joe Pistone (Depp), um agente especial do FBI que se infiltra no traiçoeiro submundo do crime organizado, transitando com cautela entre as várias atividades que dominavam o obscuro cenário de Nova York no final dos anos 70. Sob a identidade secreta de Donnie Brasco, o policial se passa por um especialista em joias para conquistar a confiança de Lefty Ruggiero (Pacino), um dos maiores mafiosos da América e principal intermediário na comercialização ilegal de peças de alto valor. A empatia e a identificação mútua são imediatas e o peixe rapidamente morde a isca.

Com o tempo, o vínculo dos dois protagonistas vai se estreitando – e tão logo se transformam em companheiros inseparáveis. A cumplicidade e a confiança que Ruggiero deposita em Donnie faz com que ele o aponte como o seu novo protegido, colocando-o a par dos negócios da poderosa Família Bonano e fazendo-o se aproximar da facção comandada pelo temido Sonny Black (Michael Madsen). Definitivamente dentro do esquema, Pistone (que trabalhou diretamente como consultor do diretor Mike Newell durante as filmagens) encara agora um terrível dilema: forjando lealdade na relação com um perigoso gângster, ele põe em risco não só a sua vida, como a de toda sua família.

Substancialmente, é a veracidade da história que dá o tom perfeito para uma narrativa eletrizante que prende a atenção do espectador. Talvez, o grande erro foi trazer de forma tardia a biografia de Donnie Brasco para as telas. Ainda sim, a obra sobrevive sustentada por interpretações notáveis de um acontecimento fantástico que, propositalmente, acaba deixando uma pequena dúvida no ar – com o passar dos anos, ganhará o seu devido reconhecimento.

"Donnie Brasco" (1997) de Mike Newell - Mandalay Entertainment [us]
Baltimore Pictures [us] | Mark Johnson Productions [us]

O Doce Amanhã (The Sweet Hereafter, Canadá, 1997)

Direção: Atom Egoyan

Adaptando de maneira brilhante um ardiloso romance do escritor estadunidense Russell Banks, “O Doce Amanhã” contempla uma série de fatos incomuns decorrentes do acidente com um ônibus escolar que abalam a rotina de uma pequena cidade localizada no extremo oeste do Canadá. O desastre acaba provocando a morte de quatorze crianças e deflagra um delicado, perigoso e suscetível esquema montado para tratar das evidências e das fragilidades deste terrível acontecimento. Enlutadas, as famílias das vítimas recebem a visita de Mitchell Stevens (Ian Holm), um advogado forasteiro que tenta inscrevê-las em uma ação judicial coletiva com o objetivo de solicitar uma polposa indenização.

Fica nítida a postura agenciosa e ostensiva de Stevens, que busca na consternação alheia uma base sentimental estável para realizar o seu trabalho e garantir qualquer tipo de recompensa financeira. Ao mesmo tempo, ele ainda é confrontado por um drama pessoal quando recebe constantes ligações de sua filha viciada em drogas que sempre o colocam posicionado em um angustiante rebordo de insignificância. Mergulhado em dúvidas, o advogado continua acreditando que somente a culpabilização de alguém poderá acalmar o devastador sentimento de raiva e perplexidade que afetou o espírito coletivo dessa comunidade.

Nicole Burnell (Sarah Polley), uma das sobreviventes da tragédia, perdeu os movimentos das pernas e acabou desenvolvendo uma personalidade passivo-agressiva. Tentando recuperar a confiança e a diginidade, ela se torna parte central dessa indecorosa artimanha jurídica quando decide lançar mão de seu testemunho e reunir todos os seus concidadãos em um cenário sombrio e de extremo desespero no qual, ocasionalmente, a incessante e piedosa busca pela salvação pode sobrepor alguns atos de honestidade.

A atmosfera hipnótica e sufocante criada pelo diretor Atom Egoyan desafia a mente do espectador, bem como o sequencial poderio de imagens que bombardeiam uma linha do tempo fragmentada, revelando aos poucos o misterioso passo a passo dessa fatalidade. Mesmo sem querer transmitir qualquer tipo de ensinamento, o tom melancólico presente na estrutura narrativa de “O Doce Amanhã” é delineado pelos contornos de uma parábola sofisticada. Seguindo por essa linha, os eventos da vida cotidiana estão diretamente ligados ao inevitável encontro do ser humano com a morte, de forma que os inquietantes dramas individuais e o insípido convívio em sociedade venham para mascarar toda a naturalidade que deveríamos transparecer ao lidar com as nossas perdas – condição de uma “verdade moral” alcançada diante da impotência e do expurgo de um luto que nunca será consumado.

"The Sweet Hereafter" (1997) de Atom Egoyan - Alliance Communications Corporation [ca]
Ego Film Arts [ca] | Téléfilm Canada [ca] | Harold Greenberg Fund, The [ca] | Movie Network, The (TMN) [ca]

Para conhecer ou relembrar os cinco filmes que foram apresentados na PARTE I da nossa retrospectiva, basta visitar o artigo clicando no link AQUI.

E continuem acompanhando a nossa revisão cinematográfica, que retornará com PARTE III já na próxima semana!

Até lá...

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