Em pouco mais de 120 anos de história, o Cinema foi capaz
de produzir um número incontável de histórias que habitam o imaginário de
milhões (ou até bilhões) de espectadores e fãs ao redor do mundo. Alguns dos
filmes já nascem como clássicos instantâneos; outros esperam algum tempo para
receberem a devida atenção ou o reconhecimento do público para que, enfim,
também possam ser considerados trabalhos inesquecíveis e fundamentais.
Mais uma vez “cortamos um dobrado” para manter o blog de
pé em 2017, mas como parte de um compromisso anual firmado e reafirmado pelo Rotina
Cinematográfica em algumas publicações, elencaremos mais 20 importantes
títulos em nossa já tradicional coluna, todos eles produzidos e lançados no ano
de 1997. A lista é composta por obras que, de certa forma, se transformaram em peças
cinematográficas atemporais devido à diferentes graus de subjetividade (aclamação
popular, participação em festivais, premiações ou reconhecimento de crítica).
Comece então a acompanhar a retrospectiva que faremos ao
longo as próximas semanas e relembre grandes filmes que sobrevivem ao tempo e
que mantêm todo o vigor e o fôlego completando 20 anos em 2017. Títulos que, se
ainda não estão, já deveriam estar nas estantes (ou nos HDs) de qualquer
cinéfilo.
Violência Gratuita (Funny Games, Áustria, 1997)
Direção: Michael Haneke
Quando a agressividade e a conivência reprimida sustentam
o eixo central de um thriller
psicológico provocante, batemos de frente com uma premissa engenhosa que
dificilmente será apagada da memória. Michael Haneke nunca economizou a sua
sordidez para criar situações de enorme desconforto em todos os seus trabalhos.
Como de costume, o diretor é bastante rude com o seu público; e a maneira com
que ele brinca com os sentimentos em “Violência
Gratuita” é formidável, o que acaba levando o espectador ao limite de suas
emoções. A nossa indiferença ou inocência são colocadas em xeque ao percebermos
que somos constantemente alimentados pelo fascínio incontrolável de observar a
selvageria de outrem de forma aleatória e intercorrente.
Anna (Susanne Lothar) e Georg (Ulrich Mühe) decidem
aproveitar as férias de verão em uma bela casa à beira de um lago junto com o
filho, Schorschi (Stefan Clapczynski). Logo na chegada, a família é
surpreendida ao receber a inesperada visita de dois jovens simpáticos e de boa
aparência, mas de atitudes um tanto suspeitas. Demonstrando cordialidade, Peter
(Frank Giering) bate à porta e pede alguns ovos emprestados a Anna, que prepara
o almoço na cozinha; já Paul (Arno Frisch) se apresenta a Georg como um dos
amigos hospedado na casa dos vizinhos e que veio passar uma temporada na região
a fim de se distrair e tentar aperfeiçoar as suas técnicas no golfe.
Entretanto, o clima de tranquilidade vai dando lugar a um
pavoroso cenário de perversão. O casal é ludibriado pelo virtuosismo enganador
de Peter e de Paul e passa a ser envolvido em um angustiante e perigoso jogo de
agressões físicas e verbais pautado por inesperadas reações. A tensão criada
nos diálogos iniciais e o evento que provoca o espantoso desenrolar dos
acontecimentos assustam, afinal estamos diante de um espetáculo brutal e somos
experimentalmente cúmplices desse absurdo, presenciando – atônitos e incrédulos
– todos os atos de barbaridade praticados por dois psicopatas.
“Violência Gratuita” é extremamente chocante e subversivo,
pois aborda questões perturbadoras que afetam valores intangíveis da sociedade,
além de ter a destreza para atacar a nossa essência animalesca, naquilo que
podemos classificar como um “sadismo diligente”. O filme glorifica a desgraça e
ainda denuncia a estilização dessa violência no cinema, fora a ausência de
sentido de algumas situações que, infelizmente, ocorrem na vida real;
evidências do tino implacável da tragédia, bem como esse prazer mórbido nutrido
pela humanidade desde o início dos tempos.
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"Funny Games" (1997) de Michael Haneke - Wega Film [at] |
Los Angeles: Cidade
Proibida (L.A. Confidential, Estados
Unidos, 1997)
Direção: Curtis Hanson
Virtudes impudicas definem a arrojada imersão do diretor
Curtis Hanson no apaixonante e corrupto submundo da Los Angeles dos anos 50.
Seu trabalho é inspirado por um dos livros que compõe a série de ficção
criminal “L.A. Quartet” do escritor
James Ellroy, famoso pelo estilo narrativo telegráfico que, basicamente,
suprime alguns dos elementos mais importantes na sequência linear dos fatos e
faz a compensação expositiva através de frases curtas e certeiras que causam
impacto no leitor. Essa característica textual se mantém viva na composição do
roteiro da adaptação cinematográfica, transformando “Los Angeles: Cidade Proibida” em um clássico instantâneo
extremamente rico em detalhes e marcado por impressionantes reviravoltas.
Um violento massacre que terminou com a morte de seis
pessoas em um famoso bar da cidade desencadeia o ritmo eloquente dos
acontecimentos. A partir deste atentado, uma aliança imoral une três policiais
que utilizam métodos distintos para percorrer a mesma linha investigativa e
solucionar esses misteriosos assassinatos. Bud White (Russell Crowe) é o tira
bruto e indomável que, apesar de agir com benevolência, é capaz de fazer
justiça com as próprias mãos; Ed Exley (Guy Pearce) resguarda toda a sua
ferocidade em uma insígnia de elegância e retidão, estando sempre disposto a
fazer qualquer coisa para conquistar uma promoção, exceto se vender; e o
pretensioso Jack Vincennes (Kevin Spacey) é aquele que sempre procura o caminho
mais fácil para se autopromover, alcançando fama e prestígio dentro da
corporação.
O ar detetivesco da trama oferece o cenário perfeito para
que uma rede conspiratória de subornos e venalidades seja deflagrada; o que
acaba envolvendo o mais alto escalão da sociedade e atingindo até mesmo os seus
maiores figurões, que estão diretamente ligados a um glamoroso esquema
prostituição no qual cada uma das garotas de programa personifica uma famosa
estrela de cinema. Dentre elas, a enigmática e voluptuosa Lynn Bracken (Kim
Basinger) surge para embaraçar o imbróglio.
A ambientação sombria e o cerne emocional ligado às
questionáveis condutas dos agentes da lei é que dão força e brilhantismo ao
enredo de “Los Angeles: Cidade Proibida”
– delineando características típicas do gênero batizado de neo-noir ainda na derrocada da década de 50 – premiado com um Oscar
na categoria de melhor roteiro adaptado em 1998. Com um grande elenco, que ainda
conta com participações veementes de Danny DeVito e James Cromwell, o filme
ainda abocanhou mais um prêmio da Academia na categoria de melhor atriz coadjuvante,
para Basinger.
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"L.A. Confidential" (1997) de Curtis Hanson - Regency Enterprises [us] | Wolper Organization, The [us] | Warner Bros. [us] |
Princesa Mononoke (Mononoke-hime, Japão, 1997)
Direção: Hayao Miyazaki
Exaltado como uma das maiores referências do cinema de
animação no Japão, Hayao Miyazaki sempre chamou a atenção por sua inventividade
e pelo interminável fluxo de ideias na concepção de roteiros para bons filmes.
Desde antes da criação do Studio Ghibli, o diretor presenteava seu público com
obras extraordinariamente sensíveis e de uma beleza visual – ao mesmo tempo –
sutil e impactante. Entretanto, a opção de sempre priorizar a delicadeza do
trabalho manual ia de encontro aos interesses dos investidores, o que
dificultava o lançamento de algumas produções. Pressionado pelo executivo
Toshio Suzuki, Miyazaki acolheu o pedido e permitiu o uso de computação gráfica
para apressar a finalização do seu mais novo projeto, cumprindo o cronograma de
estreia original. Sombrio e com ensinamentos docilmente ferozes, “Princesa Mononoke” conquistou de vez a
crítica internacional.
Abordando, de forma severa e vanguardista, assuntos
complexos como a guerra e a ecologia, o longa acompanha as destemidas ações do
nobre guerreiro Ashitaka que, ao defender o seu povoado do ataque do demônio
Tatari Gami, acaba sendo vítima de uma impiedosa maldição. Em busca da cura e
tentando compreender o infortúnio que lhe aflige, o jovem parte em uma jornada
rumo às terras de um outro clã e a se depara com uma violenta luta entre seres
humanos membros de uma colônia de mineração e lendários deuses florestais. No
caminho ele também encontrará San, a Princesa Mononoke, uma garota criada por
lobos e que luta ao lado desses deuses por nutrir um ódio desmedido pela
humanidade.
Em 1998, “Princesa
Mononoke” venceu a categoria principal como Melhor Filme do Japan Academy
Prize Film Award (o equivalente japonês do Oscar) e foi, por algum tempo, a
maior bilheteria cinematográfica da história do país à época de seu lançamento
(com cerca de 150 milhões de dólares arrecadados) – sendo superada apenas com a
estreia, no mesmo ano, de “Titanic”
(1997) de James Cameron. Tamanho sucesso fez com que Miyazaki anunciasse a sua
precoce aposentadoria. O cineasta temia o cansaço e uma consequente queda da
qualidade de suas obras, visto que o aumento do ritmo de trabalho e as
cobranças do mercado consumidor (agora global) seriam cada vez maiores.
Profissional apaixonado e incapaz de encerrar suas atividades
definitivamente, Miyazaki continuou a trabalhar como animador discretamente; e
o hiato na carreira como diretor durou apenas quatro anos. Ele voltou de forma
encantadora e triunfal em 2001 com o grandioso “A Viagem de Chihiro”.
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"Mononoke-hime" (1997) de Hayao Miyazaki - DENTSU Music And Entertainment [jp] | Nibariki [jp] Nippon Television Network (NTV) [jp] | Studio Ghibli [jp] | TNDG [jp] | Tokuma Shoten [jp] |
MIB: Homens de Preto (Men in Black, Estados Unidos, 1997)
Direção: Barry Sonnenfeld
Os intrigantes relatos sobre os Homens de Preto habitam o
imaginário do cidadão estadunidense desde que teorias da conspiração sobre a
existência de vida inteligente fora da Terra começaram a ser elaboradas dentro
do campo da ufologia. Tão antigo quanto o fascínio quimérico em descobrir que
“não estamos sozinhos” é o medo de termos que enfrentar consequências trágicas
resultantes de um eventual contato com criaturas de outras galáxias. Não por
acaso, ouve-se dizer que homens sisudos trajando ternos pretos trabalham
discretamente na abordagem e intimidação de testemunhas que avistaram OVNIs ou
que tiveram algum tipo de comunicação com alienígenas. Alegando serem agentes
governamentais, eles invadem a casa dessas pessoas fazendo ameaças e exigindo silêncio.
Na cultura popular, o obscurantismo da lenda foi
suavizado em uma série de histórias em quadrinhos da Malibu Comics idealizadas
por Lowell Cunningham e adaptadas para o cinema com estrondoso sucesso. Nas
páginas da banda desenhada, os Homens de Preto combatem qualquer ameaça
paranormal que possa atingir o planeta, mantendo a humanidade alheia a esses
acontecimentos. Nas telas, acompanhamos a rotina de Kay (Tommy Lee Jones), um
dos veteranos da MIB – agência não oficial e ultra-secreta do Governo dos
Estados Unidos que monitora atividades sobrenaturais suspeitas.
Sob a alcunha de Agente K., ele tem a missão de
interceptar as ações de um terrorista intergaláctico que possui planos de
assassinar dois embaixadores de galáxias opostas e de destruir a Terra. Novato
na organização, o ex-policial James Edwards, ou Jay (Will Smith), se une a Kay
assim que o colega recebe instruções para desvendar mais uma ocorrência
bizarra: saber o real motivo de um inseto gigante ter sido introduzido no corpo
de Edgar (Vincent D’Onofrio), um humilde agricultor. Talvez esse problema seja
mais uma das peças de um quebra-cabeças nebuloso que representa um risco
iminente para a sobrevivência da vulnerável raça terráquea.
Diretor de fotografia competente e eventual colaborador
em projetos de Rob Reiner e dos irmãos Coen, Barry Sonnenfeld – mais conhecido
pelos reboots cinematográficos de “A Família Addams”, até então – deu uma
cartada certeira ao levar a desconcertante e divertida história dos Homens de
Preto para Hollywood. Em termos de bilheteria, a franquia é uma das mais
bem-sucedidas da história, tendo vista que “MIIB:
Homens de Preto II” (2002) e “MIB³:
Homens de Preto 3” (2012), também dirigidos por Sonnenfeld, são trabalhos
menos altivos. E com um provável spin-off
anunciado para 2019, “MIB” promete
ganhar fôlego novamente.
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"Men in Black" (1997) de Barry Sonnenfeld - Columbia Pictures Corporation [us] | Amblin Entertainment [us] Parkes+MacDonald Image Nation [us] |
Estrada Perdida (Lost Highway, França | Estados Unidos,
1997)
Direção: David Lynch
Não é segredo para ninguém que o eloquente processo de
criação de David Lynch dá origem a peças cinematográficas instigantes.
Encoberto pela artimanha da persuasão, “Estrada
Perdida” é um de seus filmes mais misteriosos. Abstrair o “caos organizado”
que conduz as situações da trama é o primeiro grande passo para embarcar na
viagem insana do diretor. No meio deste turbilhão está Fred Madison (Bill
Pullman), um saxofonista acusado de assassinar a esposa, Renee Madison
(Patricia Arquette), uma mulher acanhada e excêntrica. Ele tem certeza absoluta
de que não é o culpado, mas ao lembrar das fitas de câmeras de segurança que
vinha recebendo em casa, começa a duvidar de suas próprias convicções.
Fred acreditava que poderia estar sendo traído, mas as
gravações secretas que mostram o casal sendo vigiado enquanto dormia são provas
cabais de que toda a rotina ao redor do músico vinha sendo registrada. Porém
Renee já está morta e, sem ter tempo para compreender o que aconteceu, ele já
se encontra preso e sentenciado à morte por ser o principal suspeito do crime.
De forma iminente, Fred amanhece em sua cela transmutado em Pete Dayton
(Balthazar Getty), um jovem mecânico de automóveis que é prontamente libertado
após ter a sua ficha penal consultada pela polícia.
Pontos de virada como este são elementos preponderantes
nas absurdas e envolventes narrativas lynchianas.
A confusão instaurada tenta restabelecer uma lógica caminhando numa linha tênue
entre alucinação e irracionalidade. A aparente linearidade do enredo volta aos
trilhos quando registra o encontro de Pete com um de seus clientes, Dick
Laurent (Robert Loggia), um gângster bem relacionado que ostenta a sedutora
companhia de Alice Wakefield (Patricia Arquette), uma loira enigmática idêntica
à Renee Madison. Pete se envolve Alice e, a partir desse momento, mais uma
série de extravagantes desvarios desfilam diante de nossos olhos, tendo como
ambientação a inescrupulosa cena da máfia sustentada pelo submundo da pornografia.
No subterfúgio de todos os acontecimentos – supostamente
– desconexos, “Estrada Perdida” acaba
sendo um filme sobre estar ou não estar em determinados lugares. A troca de
identidade do personagem principal é o ponto de virada que tenta, simultaneamente,
confirmar e rechaçar que (não) estamos acompanhando uma tradicional cronologia
de fatos. Claramente somos privados de algumas sensações para não ter a
percepção do todo; e fugir das convenções é fundamental para compreender toda a
genialidade de David Lynch e mergulhar de cabeça nessa loucura que ele nos
proporciona.
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"Lost Highway" (1997) de David Lynch - October Films [us] | CiBy 2000 [fr] Asymmetrical Productions [us] | Lost Highway Productions LLC [us] |
Continuem acompanhando nossa retrospectiva e aguardem a Parte II na próxima semana!
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