Um exercício de reflexão acerca da angustiante relação do
ser humano com a vida e com a morte; um projeto instigante com o peculiar sabor
de perversidade que tenta promover uma discussão severa sobre o poder destrutivo
da imprensa; uma representação nostálgica e pessimista dos mais sensíveis dilemas
pessoais e das consequentes incertezas em relação ao amor; a formidável biografia
de um lendário agente do FBI que chegou de forma um pouco tardia às telas; e um
dos filmes mais cruéis e sufocantes sobre as trágicas consequências de um desmedrado
e insólito convívio em sociedade.
Continuem acompanhando a retrospectiva especial que o Rotina
Cinematográfica vem realizando ao longo destes últimos dias. Apresentamos
agora mais cinco importantes trabalhos produzidos e lançados no não tão
longínquo ano de 1997. Filmes essenciais
que tentam manter o fôlego e a vigorosidade completando os seus 20 anos em 2017
e que – se ainda não estão – já deveriam estar nas estantes (ou nos HDs) de
qualquer cinéfilo.
Gosto de Cereja (Ta’m e Guilass, Irã | França, 1997)
Direção: Abbas
Kiarostami
Grande vencedor da Palma de Ouro na 50ª Edição do
Festival de Cannes – dividindo o prêmio com “A
Enguia” (1997) do diretor japonês Shôhei Imamura – “Gosto de Cereja” é um maravilhoso exercício de reflexão pautado na
força provocativa de seus diálogos e no poder inebriante de suas imagens.
Contornado por características ora despojadas, ora minimalistas, o filme se
sustenta numa plataforma vigorosa de belas argumentações ao traçar uma linha
filosófica rígida e sóbria por cima da angustiante relação dos seres humanos
com a vida e com a morte.
Absorta, a câmera de Abbas Kiarostami acompanha a amargurada
trajetória de Senhor Badii (Homayoun Ershadi), um homem de meia-idade que
percorre os empoados arredores suburbanos de Teerã em busca de qualquer pessoa
que entre no seu carro e ouça uma proposta extremamente peculiar. Ele deseja
cometer suicídio e, caso este plano seja executado com sucesso, pretende
oferecer uma generosa recompensa em dinheiro para quem puder enterrá-lo sob a
sombra de uma frondosa cerejeira. Em meio a uma perdurável atmosfera de
desespero, o protagonista se encontra com alguns de seus prováveis assistentes,
dentre eles um soldado curdo, um seminarista afegão e um taxidermista turco.
Há quem aceite pegar uma carona com Badii, testemunhar as
suas plausíveis divagações e ao menos escutar o curioso pedido deste suicida em
potencial. Por uma série motivos (sejam eles de cunho moral ou religioso), a
maioria desses homens vai recusando o inconveniente serviço até que um deles
finalmente decide ajudá-lo. Em momento algum o espectador fica conhecendo as
reais motivações que fizeram esse senhor escolher a opção de tirar a própria
vida, mas as dúvidas se tornam praticamente irrelevantes quando descobrimos que
a principal virtude da trama está na altivez dos encontros. Trabalhando sem um
roteiro previamente estruturado, Kiarostami constrói a sua narrativa baseado no
inesperado e nas eventualidades originadas por uma relação direta com e entre
os atores, em sua maioria amadores.
Dotado de uma ambiguidade polivalente e inconclusiva, o
decorrer das ações dentro do longa não disfarça o seu tom indagativo e racional
se transformando, de maneira instantânea, em uma das peças cinematográficas
mais controversas e ousadas do cinema iraniano de vanguarda, que atingiu o seu
ápice de inventividade durante a década de 90. Contemplativo, engenhoso, sereno
e fundamentalmente simples, “Gosto de
Cereja” é um legítimo estudo de emoções que procura valorizar a nossa
vivência enquanto buscamos respostas para os mistérios da existência e da
efemeridade.
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"Ta'm e Guilass" (1997) de Abbas Kiarostami - Abbas Kiarostami Productions | CiBy 2000 [fr] | Kanoon [ir] |
O Quarto Poder (Mad City, Estados Unidos, 1997)
Direção: Costa-Gavras
Título obrigatório para estudantes e profissionais de
comunicação ou jornalismo, “O Quarto
Poder” também é um prato cheio para todas aquelas pessoas que gostam de
filmes instigantes, provocativos e deliciosamente perversos. Centrado nas
discussões sobre o papel e as influências que a mídia exerce nas mais variadas
camadas da sociedade, o longa do diretor grego Costa-Gavras descreve, com uma
perspicácia incisiva e direta, o poder destrutivo da imprensa e a sua força
irrefragável perante o helênico princípio da trias politica, bem como a esmagadora capacidade manipulativa junto
a formação do comportamento e da consciência popular.
Com uma carreira respeitada dentro de uma grande rede de
televisão da Califórnia, Brackett (Dustin Hoffman) é um repórter investigativo
experiente que enfrenta uma crise de identidade profissional pautada pela
rotina monótona e pela subserviência forçada aos chefes. Perdendo espaço dentro
da redação, ele passa a trabalhar à frente das equipes que realizam transmissões
externas. Durante uma cobertura sem importância dentro de um museu de história
natural da cidade de Madeline, o jornalista se depara com uma situação peculiar
que poderá mudar o curso do seu dia: o ex-segurança Sam (John Travolta) faz uma
visita inoportuna à supervisão para pedir seu emprego de volta, pois acha que
foi demitido injustamente.
Entretanto, alguns detalhes lastimáveis geram um clima de
tensão inesperado. A negociação não é nada amistosa, pois o vigilante ameaça a
diretora da instituição com uma espingarda e, para complicar ainda mais, um
grupo de crianças fazia uma visita guiada no momento do desentendimento. Por
fim, um tiro acidental desencadeia uma tragédia anunciada, fazendo com que
Brackett decida aproveitar essa chance para tentar fazer uma cobertura
exclusiva do caso e retornar à fama com um espetacular furo de reportagem.
Rapidamente, o evento toma proporções gigantescas e a produção inverídica e
megalomaníaca de fatos começa a sair do controle, afinal os altos índices de
audiência são mais importantes que verdades mal contadas.
Uma antiga máxima diz que cineastas consagrados costumam
decepcionar pelas incursões em Hollywood, fazendo com que alguns críticos
declarem que Costa-Gavras não está em plena forma na condução de “O Quarto Poder”, pois cai na artimanha
do exagero e da previsibilidade ao abordar um tema tão audacioso como o
sensacionalismo barato. Todavia, na contramão do desapontamento está o
currículo de um diretor que é fonte de inspiração quando o assunto é cinema
político e detentor de uma potência intelectual que jamais deve ser desprezada.
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"Mad City" (1997) de Costa-Gavras - Warner Bros. [us] | Arnold Kopelson Productions | Punch Productions [us] |
Felizes Juntos (Chun Gwong Cha Sit, Hong Kong | Japão |
Coreia do Sul, 1997)
Direção: Wong Kar-Wai
“Todo solitário é
igual...” Essa é uma
constatação angustiante e genuína, pois define um compassivo cenário de
melancolia que alcança uma dimensão emocional sucumbente, sobretudo quando está
presente em um filme que carrega, na sua mais profunda intimidade, uma
abordagem honesta e invulgar acerca do amor. É raro presenciarmos uma discussão
proeminente sobre os turbulentos dilemas pessoais do ser humano, que sempre
indagam quais são as possibilidades de dois opostos conseguirem alcançar a
felicidade em conjunto. Em “Felizes
Juntos” conseguimos encontrar algumas respostas para esses questionamentos,
observando o quanto a alegria e a paz podem ou não preencher o relacionamento
de um casal.
Lai Yiu-Fai (Tony Leung) e Ho Po-Wing (Leslie Cheung) são
namorados e decidem fazer uma viagem fortuita à Argentina. Os dois acabam
ficando sem dinheiro e, com isso, precisam ficar em Buenos Aires por mais tempo
do que haviam planejado. Com o passar dos dias, os parceiros descobrem que as
suas vidas se afastam em direções absolutamente contrárias. Enquanto um começa
a trabalhar, planejando retornar o mais breve possível para Hong Kong, o outro
se afunda em uma sórdida degradação moral e psicológica.
A ambientação nostálgica e pessimista – representada e
captada pelas lentes magnéticas do diretor Wong Kar-Wai – ajuda a escancarar a
verdadeira desilusão de um isolamento provocado não pelas ações, mas
simplesmente pelas dolorosas circunstâncias do destino. De maneira gradativa, o
apego, a confiança e a estima que um tinha pelo outro vai desmoronando, ao
passo que um jogo aflitivo que mistura compaixão e infidelidade vai sendo
praticado inconscientemente por ambos. Coberto de incertezas, o caos instaurado
pelo conflito talvez venha para ressignificar uma esperança.
Vencedor do Prêmio de Melhor Direção do Festival de
Cannes em 1997, Kar-Wai também é responsável pelo impecável roteiro de “Felizes Juntos”, uma narrativa ácida,
cruel e irônica que retrata com uma intensidade descomunal o panorama
depressivo da lógica social fundamentada pela aceitação e pelo convívio com
alteridade. O particular dinamismo estético do cineasta ainda pontua, com muita
sutileza, o desenvolvimento de outras temáticas como o culturalismo, a política
e a sexualidade, que se encaixam com perfeição no elemento central do enredo: a
solidão, uma questão abordada em praticamente todos os seus trabalhos.
Inclusive, o fato da relação apresentada ser homoafetiva é apenas mais um mero
detalhe de um incrível conto amoroso, pois é tratado de forma natural e não
provoca nenhum estranhamento que gere eventuais e infelizes abnegações ou hostilidades.
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"Chun Gwong Cha Sit" (1997) de Wong Kar-Wai - Block 2 Pictures [hk] Jet Tone Production [hk] | Prénom H Co. Ltd. [jp] | Seowoo Film Company [kr] |
Donnie Brasco (Donnie Brasco, Estados Unidos, 1997)
Direção: Mike Newell
É curioso pensar que um ótimo filme de máfia, que
conseguiu reunir astros do calibre de Al Pacino e Johnny Depp, tenha tido uma
baixa receptividade à época de seu lançamento e que continue sendo tão pouco
conhecido pelo público de maneira geral. Acomodado ao acaso numa espécie de
limbo cinematográfico, “Donnie Brasco”
carecia de pujança ao longo de seu processo de concepção, justamente pelo fato
de abordar uma temática repetitiva e saturada para um gênero que obteve grande
destaque no cinema em décadas anteriores. Apesar do desempenho
surpreendentemente acanhado, o projeto mostra a sua força com uma trama
audaciosa conduzida com absoluta excelência, não por acaso veio a receber uma
indicação ao Oscar na categoria de Melhor Roteiro Adaptado.
Baseado em fatos reais, o longa acompanha os passos de
Joe Pistone (Depp), um agente especial do FBI que se infiltra no traiçoeiro
submundo do crime organizado, transitando com cautela entre as várias
atividades que dominavam o obscuro cenário de Nova York no final dos anos 70.
Sob a identidade secreta de Donnie Brasco, o policial se passa por um
especialista em joias para conquistar a confiança de Lefty Ruggiero (Pacino),
um dos maiores mafiosos da América e principal intermediário na comercialização
ilegal de peças de alto valor. A empatia e a identificação mútua são imediatas
e o peixe rapidamente morde a isca.
Com o tempo, o vínculo dos dois protagonistas vai se
estreitando – e tão logo se transformam em companheiros inseparáveis. A
cumplicidade e a confiança que Ruggiero deposita em Donnie faz com que ele o
aponte como o seu novo protegido, colocando-o a par dos negócios da poderosa
Família Bonano e fazendo-o se aproximar da facção comandada pelo temido Sonny
Black (Michael Madsen). Definitivamente dentro do esquema, Pistone (que
trabalhou diretamente como consultor do diretor Mike Newell durante as
filmagens) encara agora um terrível dilema: forjando lealdade na relação com um
perigoso gângster, ele põe em risco não só a sua vida, como a de toda sua
família.
Substancialmente, é a veracidade da história que dá o tom
perfeito para uma narrativa eletrizante que prende a atenção do espectador.
Talvez, o grande erro foi trazer de forma tardia a biografia de Donnie Brasco
para as telas. Ainda sim, a obra sobrevive sustentada por interpretações
notáveis de um acontecimento fantástico que, propositalmente, acaba deixando
uma pequena dúvida no ar – com o passar dos anos, ganhará o seu devido
reconhecimento.
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"Donnie Brasco" (1997) de Mike Newell - Mandalay Entertainment [us] Baltimore Pictures [us] | Mark Johnson Productions [us] |
O Doce Amanhã (The Sweet Hereafter, Canadá, 1997)
Direção: Atom Egoyan
Adaptando de maneira brilhante um ardiloso romance do
escritor estadunidense Russell Banks, “O
Doce Amanhã” contempla uma série de fatos incomuns decorrentes do acidente
com um ônibus escolar que abalam a rotina de uma pequena cidade localizada no
extremo oeste do Canadá. O desastre acaba provocando a morte de quatorze
crianças e deflagra um delicado, perigoso e suscetível esquema montado para
tratar das evidências e das fragilidades deste terrível acontecimento.
Enlutadas, as famílias das vítimas recebem a visita de Mitchell Stevens (Ian
Holm), um advogado forasteiro que tenta inscrevê-las em uma ação judicial
coletiva com o objetivo de solicitar uma polposa indenização.
Fica nítida a postura agenciosa e ostensiva de Stevens,
que busca na consternação alheia uma base sentimental estável para realizar o
seu trabalho e garantir qualquer tipo de recompensa financeira. Ao mesmo tempo,
ele ainda é confrontado por um drama pessoal quando recebe constantes ligações
de sua filha viciada em drogas que sempre o colocam posicionado em um
angustiante rebordo de insignificância. Mergulhado em dúvidas, o advogado
continua acreditando que somente a culpabilização de alguém poderá acalmar o
devastador sentimento de raiva e perplexidade que afetou o espírito coletivo
dessa comunidade.
Nicole Burnell (Sarah Polley), uma das sobreviventes da
tragédia, perdeu os movimentos das pernas e acabou desenvolvendo uma personalidade
passivo-agressiva. Tentando recuperar a confiança e a diginidade, ela se torna
parte central dessa indecorosa artimanha jurídica quando decide lançar mão de
seu testemunho e reunir todos os seus concidadãos em um cenário sombrio e de
extremo desespero no qual, ocasionalmente, a incessante e piedosa busca pela salvação
pode sobrepor alguns atos de honestidade.
A atmosfera hipnótica e sufocante criada pelo diretor
Atom Egoyan desafia a mente do espectador, bem como o sequencial poderio de
imagens que bombardeiam uma linha do tempo fragmentada, revelando aos poucos o
misterioso passo a passo dessa fatalidade. Mesmo sem querer transmitir qualquer
tipo de ensinamento, o tom melancólico presente na estrutura narrativa de “O Doce Amanhã” é delineado pelos contornos
de uma parábola sofisticada. Seguindo por essa linha, os eventos da vida
cotidiana estão diretamente ligados ao inevitável encontro do ser humano com a
morte, de forma que os inquietantes dramas individuais e o insípido convívio em
sociedade venham para mascarar toda a naturalidade que deveríamos transparecer
ao lidar com as nossas perdas – condição de uma “verdade moral” alcançada
diante da impotência e do expurgo de um luto que nunca será consumado.
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"The Sweet Hereafter" (1997) de Atom Egoyan - Alliance Communications Corporation [ca] Ego Film Arts [ca] | Téléfilm Canada [ca] | Harold Greenberg Fund, The [ca] | Movie Network, The (TMN) [ca] |
Para conhecer ou relembrar os cinco filmes que foram
apresentados na PARTE I da nossa
retrospectiva, basta visitar o artigo clicando no link AQUI.
E continuem acompanhando a nossa revisão cinematográfica,
que retornará com PARTE III já na
próxima semana!
Até lá...