Encarar mais de duzentos trabalhos distribuídos ao longo
de 65 anos de carreira não parece ser tarefa fácil nem mesmo para algumas das
mais célebres personalidades do mundo das artes. Ainda assim, é possível se
deparar com algum astro fora de série que tenha construído esse primoroso
currículo de maneira extremamente admirável. Figura exponencial do cinema e do
teatro britânico, John Hurt faleceu nesta última sexta-feira, dia 27 de
janeiro, aos 77 anos. O ator lutava contra um câncer no pâncreas há quase dois
anos.
Membro da conceituada Royal Academy of Dramatic Art, John
Hurt fez a sua estreia nos palcos londrinos no ano de 1962. Após participar de
um par de produções para a televisão e de uma sequência de três filmes menores
na primeira metade da década de 60 (incluindo o ótimo “Um Grito de Revolta”), o ator despontou para o cinema no longa “O Homem que não Vendeu sua Alma” (1966)
do diretor Fred Zinnemann. O convite para participar do projeto veio logo após
Zinnemann ficar impressionado com a versatilidade e domínio de palco de Hurt no
espetáculo “Little Malcolm and His
Struggle Against the Eunuchs” (1966). Eloquente e ácida comédia dramática,
a peça ganhou, inclusive, uma versão cinematográfica em 1974, dirigida por
Stuart Cooper e protagonizada pelo próprio John Hurt.
O requinte e a sagacidade sempre ofereceram um tom
imponente às interpretações do ator, permitindo que ele construísse uma trajetória
sólida e repleta de personagens inesquecíveis. Reverenciado por suas distintas
atuações, acabou se tornando um artista respeitado em seu meio e homenageado
nos mais importantes festivais de cinema do mundo. John Hurt foi indicado sete
vezes ao BAFTA, o maior prêmio do cinema e da televisão no Reino Unido,
vencendo em três ocasiões: melhor ator em filme para a televisão por “Vida Nua” (1975) de Jack Gold; melhor
ator coadjuvante por “O Expresso da
Meia-Noite” (1978) de Alan Parker; e melhor ator por “O Homem Elefante” (1980) de David Lynch. Em 2012 ele ainda viria a
receber um prêmio especial da academia britânica pelo conjunto de sua obra e
por sua excepcional contribuição para o Cinema.
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O ator britânico John Hurt (1940 - 2017) em "1984" (1984) de Michael Radford Umbrella-Rosenblum Films Production [gb] | Virgin [gb] |
Coincidentemente, as laureadas interpretações de John
Hurt em “O Expresso da Meia-Noite” e “O Homem Elefante” também foram devidamente
reconhecidas pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados
Unidos, que acabou indicando o ator ao Oscar pelos seus papéis nestas duas
ocasiões. Certamente, Max, o prisioneiro nauseabundo e viciado em heroína do
primeiro filme, foi o seu personagem mais ordinário, repulsivo e genial; já
John Merrick, a deformada, exótica e sensível figura que dá nome ao segundo
filme, escancara toda a magnitude das qualidades de Hurt como artista que,
mesmo por trás de uma maquiagem extremamente carregada, entrega um trabalho memorável,
o mais humano e verdadeiro de sua carreira.
Mesmo com a enorme lista de personagens marcantes, Hurt
ainda é constantemente lembrado por ser a figura central de uma das cenas mais
apavorantes da história do cinema de terror, presente no irretocável “Alien, o Oitavo Passageiro” (1979) de
Ridley Scott. O ator interpretou o oficial Kane, um dos tripulantes da
espaçonave Nostromo que, acometido por um mal estar súbito, acaba surpreendendo
todos os colegas de missão quando um alienígena rasga o seu peito de dentro
para fora o matando de forma instantânea. A situação completamente inesperada instaura
o caos e o medo, reverberando a escatologia do horror e da ficção científica em
um legítimo clássico atemporal.
A lista de bons filmes não para por aí com John Hurt
sempre figurando, década após década, em projetos grandiosos como a adaptação
do revolucionário clássico de George Orwell “1984”
(1984) dirigido por Michael Radford; o não menos distópico “V de Vingança” (2005) de James McTeigue; o execelente thriller “O Espião que Sabia Demais” (2011) de Tomas Alfredson; além da
participação em franquias de sucesso como as de “Harry Potter” e “Indiana
Jones”. Apesar da doença, John Hurt nunca chegou a se afastar do trabalho,
tanto que deixa quatro trabalhos inéditos já concluídos e pode ser visto nas
salas de cinema em “Jackie” (2016) de
Pablo Larraín, um dos principais destaques desta temporada de premiações.
Por fim, destacamos que o raro comprometimento somado ao
talento indiscutível colocam John Hurt como um dos maiores da história!
Que agora descanse em paz... (1940 - 2017)
Dez filmes com John Hurt
que indico (em ordem de predileção):
01 - O Expresso da Meia-Noite (Midnight Express, Reino Unido | Estados Unidos, 1978) - de Alan
Parker
02 - O Homem Elefante (The Elephant Man, Estados Unidos | Reino
Unido, 1980) - de David Lynch
03 - O Portal do Paraíso (Heaven’s Gate, Estados Unidos, 1980) - de Michael Cimino
04 - Alien, o Oitavo Passageiro (Alien, Reino Unido | Estados Unidos, 1979) - de Ridley Scott
05 - O Espião que Sabia Demais (Tinker Tailor Soldier Spy, França | Reino Unido | Alemanha, 2011) -
de Tomas Alfredson
06 - Tiros em Ruanda (Shooting
Dogs, Reino Unido | Alemanha, 2005) - de Michael Caton-Jones
07 - 1984 (1984, Reino Unido, 1984) - de Michael
Radford
08 - O Casal Osterman (The Osterman Weekend, Estados Unidos, 1983) - de Sam Peckinpah
09 - V de Vingança (V
for Vendetta, Estados Unidos | Reino Unido | Alemanha, 2005) - de James
McTeigue
10 - S.O.S. - Tem um Louco Solto no Espaço (Spaceballs, Estados Unidos, 1987) - de Mel
Brooks
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John Hurt contracena com Anne Bancroft em "The Elephant Man" (1980) de David Lynch - Brooksfilms [us] |
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