Um ano tão estranho e amedrontador quanto o de 2016 não
poderia terminar sem nos aplicar o mais duro de seus golpes, levando consigo um
verdadeiro gigante, expoente máximo do cinema nacional e imortal no coração de
todos aqueles que o admiravam. No fim da tarde desta última sexta-feira, dia
16, perdemos Andrea Tonacci. O cineasta faleceu em São Paulo, aos 72 anos, vítima
de um câncer no pâncreas descoberto em meados de maio.
Nascido no ano de 1944 em Roma, na Itália, Andrea Tonacci
migrou para o Brasil junto com a família ainda criança. Tentou se formar em
engenharia e arquitetura, mas abandou as faculdades para se dedicar ao cinema. Estreou
frente às câmeras com o curta-metragem “Olho
por Olho” (1966), que mostra um grupo de jovens amigos da classe média
paulistana vagueando de carro pelas ruas da cidade e discutindo sobre assuntos
corriqueiros frutos de suas condicionadas alienações.
Roteirizado e fotografado pelo próprio Tonacci, “Olho por Olho” foi montado pelo amigo
Rogério Sganzerla, que no mesmo período também dava os primeiros passos na
carreira de diretor com a realização de outro excelente curta, “Documentário” (1966). As peças foram
fundamentais para estabelecer os marcos iniciais de eclosão do instigante e subversivo
Cinema Marginal, corrente que ia de encontro ao exacerbado intelectualismo do
Cinema Novo e enfrentava de maneira ferrenha a censura imposta pela ditadura
militar. Inclusive, são de Andrea Tonacci dois dos trabalhos mais
revolucionários e transgressores do movimento: “Blábláblá” (1968) e “Bang
Bang” (1971).
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O cineasta italiano radicado no Brasil Andrea Tonacci (1944 - 2016) - Divulgação |
Corajoso e paradoxal, o curta-metragem “Blábláblá” manda um recado
desconcertante para os governantes militares brasileiros da época. Na sátira, o
ator Paulo Gracindo interpreta um demagógico ditador que justifica o seu
programa de governo através de um discurso hipócrita, fantasioso e versado em
humanidades. Já o formidável e inabitual filme policial “Bang Bang” é uma verdadeira potência cinematográfica. Alegoria
delirante e original marcada como uma das principais representantes do chamado “cinema
de invenção”, essa peculiar obra-prima ficou restrita à programação de
cineclubes e salas de cinema alternativas, mas acabou sendo selecionada para a
Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes em 1971.
Digno de todo louvor, Andrea Tonacci foi o grande
homenageado na 19ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, realizada no
início deste ano. Foi nesse mesmo evento que, há dez anos atrás, o cineasta
apresentou pela primeira vez “Serras da
Desordem” (2006), sem dúvidas, um dos filmes mais importantes do século XXI
e considerado por muitos o seu trabalho mais impecável. O longa reforça as
discussões de espaços em conflito no Brasil e mistura documentário e ficção ao deixar
registrado o extermínio da tribo Awá-Guajá nos anos 70 na Amazônia. A partir
dessa tragédia, passamos a conhecer a história do índio Carapirú, sobrevivente
do massacre que passa a viver em Brasília. O contato de Tonacci com os povos
indígenas e os seus esforços por manter viva uma identidade cultural
historicamente perseguida e desmantelada renderam o merecido reconhecimento de organizações
humanitárias e ambientais ao redor do mundo, bem como premiações nos festivais
de cinema mais importantes do país.
A perda de um gênio como Tonacci é mais do que lamentável.
Falar de suas obras e de seu legado é uma tarefa difícil e praticamente infindável.
O que nos consola é oportunidade de se emocionar com “Já Visto Jamais Visto” (2014), projeto que reúne um vasto conjunto
de imagens inéditas registradas por ele ao longo de sua vida: intimidades de
família, experiências em viagens, bastidores de filmagens e cenas de projetos
que nunca chegaram a ser concluídos. Com o lançamento de seu último longa,
Andrea Tonacci acabou alcançando a imortalidade antes mesmo de abandonar ou seus
planos na Terra. Só temos que agradecer pela sua luminosa existência! Vai
deixar saudades...
Descanse em paz! (1944 - 2016)
Dez filmes dirigidos por
Andrea Tonacci que indico (em ordem de predileção):
01 - Bang Bang (Bang Bang, Brasil,
1971)
02 - Serras da Desordem (Serras da Desordem, Brasil, 2006)
03 - Já Visto Jamais Visto (Já Visto Jamais Visto, Brasil, 2014)
04 - Blábláblá (Blábláblá,
Brasil, 1968)
05 - Conversas no Maranhão (Conversas no Maranhão, Brasil, 1983)
06 - Olho por Olho (Olho
por Olho, Brasil, 1966)
07 - Biblioteca Nacional (Biblioteca Nacional, Brasil, 1997) - direção dividida com Luiz
Rosemberg Filho
08 - Os Araras (Os
Araras, Brasil, 1981)
09 - Guaranis do Espírito Santo (Guaranis do Espírito Santo, Brasil, 1979)
10 - Interprete Mais, Ganhe Mais (Interprete Mais, Ganhe Mais, Brasil, 1995)
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"Bang Bang" (1971) de Andrea Tonacci - Total Filmes [br] |
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